17/6/2022. Numa decisão inesperada, Carlos Tavares retirou a Stellantis da ACEA, a associação dos construtores europeus de automóveis. Está farto do lóbi “à antiga” e tem uma nova estratégia para fazer pressão sobre os políticos, acerca da eletrificação. O homem que nunca falha, terá finalmente dado um tipo no pé?

 

O português Carlos Tavares, CEO da Stellantis, o quarto grupo automóvel do mundo e o segundo na Europa, decidiu sair da ACEA (Associação dos Construtores Europeus de Automóveis) que reúne os 16 principais construtores de automóveis, camiões e autocarros na região. Com efeito a partir do final do ano.

As razões foram explicadas num comunicado de onde tiro uma conclusão simples: Tavares estava farto do lóbi feito de forma clássica que, na sua opinião, não tem trazido nenhum resultado positivo aos construtores de automóveis.

Fundada em 1991, a ACEA tem sede em Bruxelas e foi constituída para defender os interesses dos construtores de automóveis na Europa, junto dos políticos que dirigem o continente.

Carlos Tavares foi presidente da ACEA durante um mandato que terminou em 2019, por isso conhece bem a instituição e a maneira como trabalha. E a verdade é que os resultados da ACEA têm sido parcos.

Eletrificação é o problema

Logicamente que o tema que levou a esta rotura é o da eletrificação e a aprovação pelo parlamento europeu da proibição de venda de veículos com motor térmico a partir de 2035.

A classe política soube cavalgar a narrativa do CO2 da melhor maneira e não deixou margem de manobra aos construtores que, face à opinião pública, passaram a ser os “maus da fita.”

Ninguém põe em causa a necessidade de eletrificar os transportes rodoviários. O que alguns construtores defendem é que isso seja feito de forma menos radical e mais gradual, para não causar danos na indústria automóvel.

ACEA não é capaz…

Mas parece que nem todos os construtores pensam da mesma maneira, dentro da ACEA, existindo uma fratura entre os construtores alemães e todos os outros, em relação ao processo de eletrificação.

Tavares concluiu que a ACEA não iria defender os interesses da Stellantis e a saída tornou-se inevitável. Em comunicado, a associação lamenta a saída, mas não acrescenta muito mais, apenas dizendo que vai continuar a defender os interesses dos seus associados.

A Stellantis vai organizar os fóruns públicos “Freedom to Mobility”

No seu comunicado, a Stellantis deixa claro que vai sair para deixar de fazer lóbi à moda antiga e para o fazer de outra forma. Para isso, vai organizar fóruns de debate, que já têm nome: “Freedom to Mobility”.

Debates públicos “by Stellantis”

O primeiro está previsto para o início de 2023 e está prometido que vai envolver académicos, políticos, cientistas e outros notáveis da sociedade, para descobrir “como trazer liberdade de mobilidade limpa, segura e acessível à sociedade, em face das implicações do aquecimento global.”

Uma espécie de cruzada contra os que espalham teorias falsas, informações incorretas e planos que não são eficientes, nem realistas. É a conclusão que tiro disto.

A Stellantis vai ter que gastar muito dinheiro para que estes fóruns tenham a visibilidade que pretende. Vai ter que gastar muito em marketing para passar a mensagem que deseja.

Mas será sempre difícil que estes eventos organizados pela Stellantis tenham uma imagem de independência e imparcialidade aos olhos do público.

Porque falha a ACEA?

Se a ACEA, mesmo com Carlos Tavares como presidente, não conseguiu os objetivos pretendidos pela Stellantis, como poderá a empresa conseguir isso sozinha?…

O insucesso da ACEA como agente de lóbi tem razões fáceis de compreender. A brutal competição entre os seus associados, os construtores, impede muitas vezes de se aproximarem de posições comuns.

“Partilhar tudo aquilo que o consumidor não vê e diferenciar pelo design e marketing”

O que acaba por ser um reflexo da própria indústria automóvel. Lembro-me muitas vezes do que dizia o malogrado CEO da FCA, Sergio Marchionne acerca das sinergias entre os vários construtores.

Ele mostrava a sua incredulidade por as marcas de automóveis não fazerem o mesmo que as marcas de computadores: partilhar tudo aquilo que o consumidor não vê e fazer a diferenciação pelo design e pelo marketing.

Muitos dos seus pares se mostravam horrorizados com esta ideia, dizendo que isso iria fazer perde a identidade das marcas. Mas o que se foi perdendo foi a força da indústria e o poder de lóbi.

Poluição e saúde pública

A questão da eletrificação será o tema mais fraturante de sempre, na indústria automóvel. Entre os grupos que estão a apostar forte neste campo e os que estão a ser mais progressivos, as prioridades são muito diferentes.

Parece-me que ninguém dúvida da necessidade de retirar os veículos com motor térmico das estradas, sobretudo das cidades. Os efeitos que a poluição causa na saúde pública são enormes e bem documentados.

E esses efeitos têm custos também enormes que, na Europa, caem em cima do modelo de Estado social, ou seja, nos impostos que todos pagamos.

Europa na frente, pois claro!

Quem diz que a eletrificação da Europa é insignificante em termos de redução de CO2 global, pode ter razão. Mas o problema não é esse. O problema são os custos com saúde pública, relativos a doenças cardio-respiratórias relacionados com a poluição das cidades.

Europa é a região do globo em que o modelo do Estado social está (mais) desenvolvido

E a questão coloca-se com mais urgência na Europa porque é a região do globo em que o modelo do Estado social está (mais) desenvolvido. Nos EUA, por exemplo, não há tanta pressa.

Quando alguns construtores dizem que 2035 é muito cedo para a proibição da venda de veículos com motor térmico, talvez seja bom traduzir isso por ciclos de produto: 13 anos são dois ciclos, ou seja, duas gerações de um automóvel.

Seria passar do atual Golf 8 para o Golf 10, se ele ainda existir em 2035. Não vejo que seja um período propriamente apertado, sobretudo quando já se anda a falar do assunto há tanto tempo e numa altura em que se projeta um modelo novo em menos de quatro anos.

Conclusão

Tavares defende os interesses dos seus patrões, a família Agnelli e a família Peugeot, que são os maiores acionistas da Stellantis. Mas esta estratégia de sair da ACEA, obviamente aprovada pelas duas famílias, ainda pode revelar-se um monumental e incaracterístico tiro no pé. No pé do próprio Tavares, pois se as coisas correrem mal não vão faltar candidatos ao seu lugar.

Francisco Mota

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