22/3/2024. Luca De Meo, CEO do Grupo Renault e presidente da associação dos construtores europeus de automóveis publicou uma carta aberta sobre a transição energética. Entre o diagnóstico da situação e as suas recomendações cabem mais do que boas intenções. Tema da Crónica à 6ª feira no TARGA 67, assinada por Francisco Mota.

 

Se há algo de que não se pode acusar Luca De Meo, é de excesso de contenção e de não fazer ouvir a sua voz. Pelo contrário, o atual CEO da Renault e presidente da ACEA (associação dos contrutores europeus de automóveis) tem por hábito não desperdiçar uma oportunidade de se posicionar sob o foco da atualidade.

Por vezes acusado de se preocupar em excesso com o seu marketing pessoal, a verdade é que nunca a ACEA conseguiu um nível de atenção como desde que De Meo a preside. E é bom não esquecer que já por lá passaram grandes figuras, incluindo Carlos Tavares.

Carta aberta

Numa extensa carta aberta aos europeus, que De Meo sublinha não ter por trás nenhuma ambição política, o presidente da ACEA diz que apenas deseja “contribuir para uma decisão na política certa” no que diz respeito à transição energétia da indústria automóvel europeia. Isto, poucas semanas antes das eleições para o parlamento europeu.

O documento está repleto de números relevantes e interessantes e recomendo a sua leitura na íntegra, seguindo o link no final desta Crónica à 6º feira. Aqui, vou limitar-me a “roubar” alguns desses números e tentar perceber as intenções de De Meo.

Fazer lóbi

Mas, primeiro, é bom não esquecer o papel da ACEA e do seu presidente: fazer lóbi junto dos políticos europeus em favor da indústria automóvel do Velho Continente. Um setor que emprega 13 milhões de pessoas e tem um balanço positivo, entre importações e exportações, de 102 mil milhões de euros, equivalente à dívida de um país como a França.

É a indústria que investe 26% de todo o dinheiro gasto em pesquisa e desenvolvimento por todas as indústrias na Europa. E que paga 20% de todos os impostos pagos pelo setor industrial, 392 mil milhões de euros. Tem por isso uma voz que exige ser ouvida.

Sem esquecer que o objetivo da carta é convencer os políticos que vão ser eleitos a dar um melhor tratamento à indústria automóvel europeia, há nela alguns dados elucidativos do estado das coisas neste setor.

Decadência na Europa

No diagnóstico que De Meo faz da situação dos construtores de automóveis na Europa, é realçada a mudança de hierarquia de vendas por regiões, com uma mudança clara para a Ásia, onde se vendem 51,6% de todos os carros novos, seguida pelas Américas, com 23,7% e pela Europa, com apenas 19,5%.

Quanto às vendas de veículos eletrificados (BEV e PHEV), o mercado chinês lidera com grande margem, com 60% do total das vendas, enquanto esse valor se fica pelos 4% na Europa, segundo dados de 2022.

De Meo sublinha que 35% de todos os veículos eletrificados exportados no mundo tiveram origem na China, em 2023. E que as importações desse tipo de veículos para a Europa se multiplicou por 5 desde 2017. Só entre 2020 e 2022, esse valor duplicou, com o Tesla Model Y feito na China, as gamas MG e BYD à frente.

A China a subir

Razões para esta incrível subida da China como fabricante de automóveis elétricos, são muitas e algumas bem detalhadas por De Meo. E nem todas alvo de críticas, encarando-as como exemplos a estudar e a seguir. Ou seja, chegou a altura de serem os europeus a “copiar” os chineses.

Desde logo no projeto de um novo modelo, que as marcas chinesas conseguiram reduzir para um período entre um ano e meio a dois anos; enquanto as europeias ainda precisam de 4 a 5 anos e depois mais um ciclo de comercialização entre 7 a 8 anos.

Para o presidente da ACEA, há quatro áreas que proporcionam um potencial de negócio que pode duplicar os lucros da indústria: veículos elétricos, software, mobilidade e economia circular. Mas é preciso estar preparado para isso.

6 desafios para a Europa

Numa tentativa de estruturar o seu discurso, De Meo elenca 6 desafios para as marcas europeias: descarbonização, revolução digital, regulamentação, volatilidade das novas tecnologias, volatilidade dos preços e requalificação dos trabalhadores.

Não vou aqui detalhar os seus pontos de vista nesta meia dúzia de desafios, mas vale a pena focar a atenção em dois deles. Em primeiro lugar na regulamentação, ou seja, nas normas que a comunidade europeia cria sobre a indústria automóvel.

Segundo o autor da carta, aparecem entre 8 e 10 novas normas por ano que os carros novos têm que cumprir. Isto levou à subida de peso dos automóveis em 60%, desde os anos 1990. O que também levou à subida de preços e ao aumento de CO2. Uma das consequências é o aumento da idade média do parque circulante que já vai nos 12 anos.

Outro aspeto importante é o da volatilidade da tecnologia. Com o desenvolvimento acelerado de novas tecnologia, nomeadamente das baterias, De Meo afirma que uma nova fábrica de baterias construída de raiz pode ficar obsoleta antes mesmo de ser inaugurada.

Regras e mais regras

Mas o essencial das suas críticas vai para a diferente abordagem dos Estados das três maiores regiões económicas em relação à indústria automóvel: EUA, China e Europa.

Do lado dos EUA, a estratégia do Estado é dar incentivos fiscais para a economia verde, que inclui a indústria automóvel. Isto permitiu fazer descer os custos de construção de uma gigafactory de 16 MWh de 90 milhões de dólares para 60 milhões, equiparando-se ao custo na China e ficando abaixo dos 80 milhões de dólares que custa na Europa.

Do lado da China, aponta-se o facto de o Estado local ter decidido apostar nos elétricos em 2012, tendo agora uma vantagem de uma geração face a todos os outros. Isso foi conseguido com subsídios às empresas que se quiseram dedicar ao assunto. Mas também com “joint-ventures” com construtores estrangeiros, para adquirirem “know-how”.

Campeã da ecologia

Face a estes dois exemplo, De Meo afirma que, na Europa, a posição dos políticos tem sido a de criar cada vez mais regras anti-CO2, porque a Europa quer ser a campeã mundial da ecologia, esperando com isso influenciar as outras regiões. O que não acontece ao mesmo passo.

Por outro lado, a Europa tem ficado dependente de terceiros para o fornecimento de matérias primas, nomeadamente da China e de micro processadores, de Taiwan.

Feito o diagnóstico, Luca De Meo passa às suas recomendações para a Europa se posicionar melhor nesta transição energética. Começando por dizer que a indústria automóvel europeia está mobilizada e unida, o que não me parece líquido. O que falta é a União Europeia dar outras condições e fazer nascer um verdadeiro ecossistema  para baixar o CO2, diz ele.

As 7 propostas

São basicamente 7 as proposta gerais desta carta: uma estratégia europeia para a produção de veículos elétricos, pegando na Airbus como exemplo; unir todos os setores da sociedade; parar com a consecutiva criação de regras mais limitativas; fazer uma abordagem horizontal da questão que inclua a eletricidade verde; diminuir a dependência das matérias primas externas; elaboração de um plano de ataque intermédio entre o chinês e o dos EUA e uma revisão do Green Deal.

Como fazer tudo isso, as ideias base são várias e começam com o princípio da neutralidade tecnológica e científica. Ou seja, estabelecer objetivos, mas não obrigar a seguir um único caminho, como De Meo diz estar a acontecer com os veículos elétricos.

É também preciso envolver as 200 maiores cidades europeias na gestão de acessos a veículos poluentes, de forma a termos condições semelhantes em todo o lado e estimular a compra de elétricos.

Penalizar não é suficiente

Outra ideia é a de criar prémios às entidades que atinjam ou superem as regras da União Europeia e não ficar apenas pelas penalizações e multas às que ficam aquém. Levando aqui à criação de zonas industriais “verdes” que possam receber mais subsídios.

Um passo considerado fundamental é o acesso a eletricidade verde a preços abordáveis, pois só assim é possível que o ciclo completo da produção e utilização de um elétrico seja realmente descarbonizada. Neste campo é referido que, em 2040, com 40 milhões de automóveis elétricos a circular, vai ser preciso ter disponível o equivalente a 10% do total de consumo de eletricidade, só para os automóveis.

Mais medidas

Outras medidas apontadas como salvadoras da indústria são a partilha de mais componentes entre as várias marcas, apontando os 70% como meta, ou “tudo aquilo que o cliente não vê.” Só assim se poderá voltar à produção em massa de carros pequenos e acessíveis, mas agora elétricos.

Nos últimos 20 anos, o preço dos citadinos subiu de 10 000 euros para 25 000 euros, resultando numa descida de vendas de automóveis novo na Europa de 13 para 9,5 milhões de unidades. De Meo chega a dar o exemplo dos Kei-Cars japoneses como uma via a seguir para conseguir manter a mobilidade individual nas grandes cidades.

Questão de prioridades

Mais decisões que são pedidas à União Europeia são o desenvolvimento da rede de carregamento público, incentivos ao abate de carros velhos e apostar na reciclagem de baterias, como meio de diminuir a dependência de matérias primas de terceiros. Finalmente, o Hidrógenio e os combsutíveis sintéticos também são citados.

Conclusão

O que penso de todo este discurso? Em primeiro lugar, que Luca De Meo está a fazer o que lhe compete, que é defender os interesses dos seus associados da ACEA. Que nem sempre coincidem com os da sociedade ou dos consumidores. Defende uma intervenção ativa da União Europeia e investimentos que implicam opções sociais complexas. Defende apoios à sua indústria, sabendo-se que não é a única atividade económica a precisar de ajuda. Apela a mais carros de uso individual, e não faz referência a automóveis partilhados, apontando os autónomos como uma solução, que sabemos estar distante. Claro que não faz nenhuma menção a transportes públicos coletivos, que são o ponto fulcral da mobilidade urbana. Também não esperava que o fizesse, pois não é esse o interesse dos seus associados. Mas tem o grande mérito de levantar muitos pontos de discusão, disso não há dúvidas.

Francisco Mota

Ler também, seguindo o Link

https://media.renaultgroup.com/luca-de-meos-letter-to-europe/?lang=eng