02/11/2018 Acaba de ser anunciado que a Porsche bateu mais uma vez o recorde do circuito de Nürburgring, superando com um 911 GT2 RS MR, a volta mais rápida para um carro de série que pertencia, desde Julho ao Aventador SVJ da Lamborghini.
Na Porsche, reina a satisfação, por terem recuperado um recorde pelo qual se têm batido sucessivamente, com praticamente todos os seus modelos mais potentes desde 1999, quando anunciaram que o GT3 996 conseguia fazer a volta em menos de oito minutos. Muitos outros construtores já desistiram de entrar nesta “guerra”, por terem chegado à conclusão de que se trata de um exercício que pouco ou nada mostra sobre as qualidades de um carro. Pelo menos das qualidades que querem sublinhar quando os vendem aos seus clientes. Claro que também não querem entrar num assunto que não dominam e depois ter que sair com o rabo entre as pernas, humilhados pela Porsche que conhece cada centímetro deste circuito único.

Carros de série… a sério, são cada vez menos e os que aparecem raramente são levados pelos próprios construtores

Os últimos grandes construtores a tentar a aventura foram a Nissan, com o GT-R Nismo em 2013 e a Toyota, com o Lexus LFA em 2011. Em ambos os casos com modelos oriundos de séries especiais limitadas.
São poucos os concorrentes que querem dar luta à Porsche, a não ser os Britânicos da Radical, que teimam em aparecer no Ring com carros que apenas foram homologados para andar em estrada a partir de uma lei britânica que não existe na europa. Carros de série… a sério, são cada vez menos e os que aparecem raramente são levados pelos próprios construtores. Muitas vezes são iniciativas privadas que nem sempre acabam bem.

Rival “à la carte”

Por isso a Porsche precisava de um rival e que melhor rival poderia encontrar do que uma marca italiana de superdesportivos? Não, não é a Ferrari, cujo último supercarro que passou pelo Ring foi o Enzo Ferrari em 2008, e não foi pela mão da marca. A rival eleita para dar luta à Porsche foi a… Lamborghini, nem mais. Quem está familiarizado com a constituição dos maiores grupos atuais na indústria automóvel, já percebeu as reticências. É que a Lamborghini pertence ao grupo VW, tal como a Porsche. Daqui a concluir que está tudo combinado, é um passo demasiado grande para a informação que tenho, neste momento.
Mas há sempre os factos. E os factos recentes são estes: em 2016, a Lamborghini bateu o recorde com o Huracán LP 640-4 ; em 2017, a Porsche passou para a frente com o 911 GT2 RS; em 2018, a Lamborghini voltou de novo para a frente com o Aventador LP770-4 SVJ e agora a Porsche reconquistou a liderança com o 911 GT2 RS MR. Uma alternância perfeita.

MR?… O que é isso?

Mas afinal o que são aquelas letras MR, no final da designação do 911 GT2 RS? Elas são o que realmente faz a diferença. Trata-se das iniciais de Manthey Racing, a equipa que faz correr as versões de competição do 911 GT3 RSR no campeonato WEC e que também tem uma linha de acessórios e de preparações para os entusiastas de “track-days”. O MR é isso que quer dizer, o 911 GT2 RS que agora bateu o recorde do Nürburgring não é exatamente o mesmo carro que pode ser comprado nos stands da Porsche, é uma versão preparada que a Manthey Racing vende no mercado americano para “track-days”. As maiores mudanças são ao nível da geometria e afinação da suspensão, o motor de 700 cv não é mexido e o carro continua a estar homologado para circular em estrada, mesmo na Europa. Foi o álibi perfeito para fazer parar o cronómetro em 6 minutos e 40,3 segundos.
Verdade seja dita, a Porsche está longe de ser a primeira a fazer uma habilidade deste género. O tal Nissan GT-R Nismo que conseguiu um tempo-canhão para garantir o recorde para “carros de produção em grande série”, um título inventado pela Nissan, tinha sido tão modificado que a honestidade intrínseca dos japoneses os obrigou a confessar isso mesmo, após terem feito a sua volta rápida. E o que também não deixa de ser verdade é que, tudo aquilo que acabei de escrever sobre a versão MR do 911 GT3 RS fiquei a saber lendo o comunicado de imprensa da Porsche. De falta de transparência, ninguém os pode acusar.

Acordo de cavalheiros

Tendo em conta a repercussão mediática que estes feitos costumam ter, não deixa de ser curioso referir a inexistência de uma entidade independente para homologar os recordes, nem tão pouco para fazer a cronometragem. É cada construtor que tira os seus próprios tempos. Há uma espécie de acordo de cavalheiros em que cada construtor se compromete a difundir um vídeo, feito a bordo, (pode ver aqui o video) com a volta completa e a telemetria associada, sem cortes, como é óbvio! Outro problema é que a volta, na verdade, não é uma volta. É o tempo que demora a ir da entrada do circuito até à saída, que ficam distantes entre si em cerca de 200 metros. Ou seja, em vez dos 20,8 km do Nordschleife, os recordes são feitos em 20,6 km. Isto por uma razão simples: nos dias normais, em que não há corridas no Nürburgring, os 20,6 km são uma estrada de acesso limitado e classificada como turística, com uma portagem e uma barreira que só abre depois de se pagar.

Segurança virou perigo de morte

Quando o circuito começou a ser construído, em 1925, a ideia era acabar com as perigosas corridas que então se faziam nas estradas das montanhas de Eifel, em redor e também proporcionar um local para as marcas de automóveis testarem os seus novos produtos, tudo em nome da segurança. A pista foi inaugurada em 1927, com um circuito pequeno e outro maior, o Nordschleife que sobrevive até hoje. Claro que o piso foi muitas vezes melhorado, claro que os rails de proteção foram montados e as árvores cortadas para dar espaço a escapatórias. Mas continua a ser um circuito perigoso, ou melhor, uma estrada turística perigosa. Estimativas não oficiais dizem que morrem lá todos os anos entre 3 e 12 pessoas, nos tais dias abertos ao público. O simples facto de existir uma estrada assim é uma daquelas incongruências que surpreendem na imagem de organização e ordem da Alemanha.

Já lá fiz corridas!

O traçado tem mais de cem curvas, depende da maneira como se contam e da velocidade do carro que se conduz. A maioria das curvas são rápidas ou muito rápidas, há lombas sem visibilidade, saltos, depressões, subidas e descidas e até uma curva a que chamam o carrossel. Tenho a sorte de conhecer bem o circuito, por lá ter feito muitas voltas, tanto em carros de estrada como em duas memoráveis (para mim) edições da inacreditável corrida de 24 horas em que participei em protótipos do Audi A3. Confesso que nunca guiei numa pista que estivesse sempre tão interessada em atirar-me contra os rails. Uma vez conseguiu, mas foi só de raspão.
Para andar depressa sem arriscar a vida a cada curva, convém conhecer bem o traçado. É preciso um carro com a afinação certa para andar depressa no Nürburgring, mas isso não quer dizer que seja a afinação que melhor serve em todas as outras estradas. O sobe-e-desce, as curvas rápidas, os corretores altos e uma pista sempre demasiado estreita, sem margem para erro, implica uma suspensão específica. Por outro lado, as retas, em particular a última, têm uma influência muito grande no tempo por volta. Quanto mais potência, melhor.

Ring: sim ou não?

Há muitos construtores que fazem testes no Ring, mas desconfio que a maioria é só por questões de marketing e de imagem. Para poder dizer que o seu novo carro “passou a prova do Nürburgring.” Muitos outros já nem sequer falam muito do assunto, relativizando a importância de testar no circuito para obter um carro com o comportamento pretendido numa estrada pública, com um traçado que não tenha sido desenhado há noventa anos.

Conclusão

Acreditar que o Nürburgring ainda é o teste mais relevante para um desportivo atual, seria passar um enorme atestado de incompetência a todos os engenheiros que desenharam circuitos de testes durante o último século. O que me leva de volta ao início e ao novo recorde. Ultimamente, a Porsche parece estar mais preocupada com as visualizações dos seus feitos na internet, do que em honrar o seu passado e investir no desporto automóvel, o palco que realmente lhe deu quase tudo aquilo que é hoje. Mas a verdade é que o dinheiro está a ser canalizado para outro lado, para a revolução da eletrificação nos carros de estrada. Para quando o primeiro recorde de um elétrico da Porsche, no Nürburgring?

Francisco Mota