16/11/2018. Os concessionários de carros estão à beira do abismo. O seu futuro foi traçado por um estudo da KPMG, que concluiu só terem mais dez anos de esperança de vida, se não mudarem radicalmente. E mesmo se mudarem, outros analistas da indústria automóvel consideram que mais de metade vão fechar as portas até 2025.
Para qualquer pessoa que tenha entrado casualmente num concessionário (de qualquer marca) ultimamente, isto está longe de ser uma surpresa. O cenário típico é desolador: carros parados dentro de um pavilhão desmesurado, um ou dois deprimidos vendedores sentados atrás de secretárias, com os olhos vidrados no monitor do computador. Não se passa nada, o silêncio parece o de uma igreja, nestes locais que se tornaram em santuários do nada.

Ir a um stand era uma festa

Lembro-me de ser muito miúdo e de pedir ao meu pai para ir ver os carros novos ao concessionário perto da nossa casa. Nem sequer era uma das minhas marcas preferidas, nem do meu pai, que jurava nunca vir a ter um carro dessa marca, até ao dia em que a empresa onde trabalhava lhe entregou um de serviço. Ironias do destino… Mas a visita ao “stand” era um acontecimento, para mim. Poder ver de perto carros novinhos em folha, observar a minha imagem refletida nos cromados, sentir a suavidade dos bancos e aquele “cheiro a novo” eram estímulos irresistíveis para um miúdo “maluco por carros”, mesmo se o “stand” em sí estava longe das catedrais com imagem de marca harmonizada que hoje ainda existem.
Os tempos mudaram, a realidade é outra. Nem vale a pena fazer comparações.
Mas a verdade é que os concessionários estão em risco de extinção, ou usando uma imagem mais forte, estão à beira do abismo e alguém os vai empurrar pelas costas. Quem?…

Nasceu o conceito do “franchising”, em que uma empresa exterior podia comprar o direito de vender carros

Um pouco de história. Há cem anos, os construtores pensavam que podiam vender carros à porta das fábricas, mas depressa perceberam que não. E não tinham dinheiro para montar redes de pontos de venda espalhados pelos territórios em que queriam vender. Nasceu o conceito do “franchising”, em que uma empresa exterior podia comprar o direito de vender carros, no início, de uma só marca. O conceito durou até aos nossos dias, com pequenas alterações, a maior das quais foi o surgimento de concessionários multi-marca, que partilham o “back-office” e as oficinas mas mantêm uma porta aberta ao público, para cada uma das marcas que vendem. Esta é a situação atual, só que não está a funcionar.

A “culpa é da Internet…

A “culpa” é da Internet, que tem as costas largas como a “besta negra” de muitos negócios que não se souberam atualizar e se tornaram obsoletos. Tudo começou com os sites das marcas. Os potenciais compradores passavam a ter acesso direto aos fabricantes, sem necessidade de passar por intermediários, como os concessionários. Esta dinâmica acelerou da velocidade do som para a velocidade da luz quando surgiram, nesses sites, os configuradores. O cliente pode escolher o carro que quer, com o equipamento que quer. Pode ver o resultado final e mudar de ideias. Pode voltar atrás e começar tudo de novo e pode gastar o tempo que quiser nisto, sem ter a pressão do vendedor do outro lado da secretária, a brandir um impresso e uma esferográfica.

Brincar com um configurador até se tornou num passatempo, é a versão moderna da antiga visita ao concessionário, sem o “cheiro a novo”.
O comprador de carros, pode simular tudo no configurador, pode imprimir, fazer uma busca para ver qual o melhor desconto e só depois ir a um determinado concessionário “exigir” o seu carro ao vendedor, que assim fica numa posição enfraquecida em relação ao passado. Em vez de ser um verdadeiro vendedor, torna-se num “entregador” de carros. E isto é apenas uma fase transitória, pois o futuro será ainda mais agreste.

O desapego pelo carro

Por agora, o comprador particular ainda tem no automóvel o segundo bem mais caro de sua propriedade, por isso ainda tem o reflexo de querer ver o carro antes de o pagar. Mas com os “leasings” e as suas aprovações online, tudo isso vai desaparecer. Já acontece e vai ser cada vez menor o “apego” aos automóveis, que passam a ser objetos de uso limitado no tempo, até chegar a altura de trocar por outro novo e assinar outro “leasing”. Com este afastamento do comprador pelo objeto carro, a vontade de ir ver e tocar o carro antes de o pagar vai desaparecer e, com isso, termina de vez a necessidade de existir o “stand”de vendas. Um cliente passa a poder ir buscar o carro a um qualquer ponto de recolha anónimo e impessoal, ou então receber o carro em casa, como uma encomenda.

A Lynk & Co, a prima da Volvo que vai chegar muito em breve à Europa. Não vai ter concessionários nem stands, as vendas vão ser todas “online” e em “leasing”

Há marcas que estão a montar um modelo de negócio deste estilo, como por exemplo a Lynk & Co, a prima da Volvo que vai chegar muito em breve à Europa. Não vai ter concessionários nem stands, as vendas vão ser todas “online” e em “leasing”. Fazem as entregas e as recolhas para a manutenção, o cliente nem sequer sabe onde fica a oficina.

Adaptação é possível

Vai ser o Digital a dar o tal empurrão final aos concessionários que estão à beira do abismo. A não ser que se saibam adaptar. Durante anos, os concessionários foram obrigados pelas marcas que representavam a gastar fortunas em edifícios, decorações e maquinaria específica. Um “negociozinho” suplementar para as marcas.
Isso vai acabar, claro. Mas o “stand” de vendas será substituído por quê? Numa primeira fase, a aposta será nos usados, na manutenção e no atendimento.

Durante alguns anos, a esmagadora maioria dos carros a circular vai continuar a precisar de manutenção regular, até talvez mais exigente, se no futuro os políticos se lembrarem de apertar o cinto às emissões poluentes dos carros mais antigos.
A relação com os clientes vai passar a ser ainda mais importante. Serviços de recolha e entrega de carros para revisão vão passar a ser a norma e não a exceção. Contas claras e transparentes vão ser uma exigência. Os concessionários oficiais vão ter que ser cada vez mais competitivos, face às cadeias de assistência multi-marca, que prometem o mesmo serviço por menos dinheiro.

Elétricos: outra revolução

Mas quando os carros elétricos ganharem expressão no mercado, tudo se vai alterar outra vez.
Com menos peças e maior longevidade de materiais consumíveis, como por exemplo os travões e outros, os carros elétricos vão dar menos dinheiro a ganhar, mesmo no que à manutenção diz respeito. Vai ser necessária uma nova adaptação às novas condições. No Japão, a Mitsubishi tem em curso um programa piloto em que os concessionários passam a ter postos de carregamento para carros elétricos e outros serviços associados. É uma ideia para trazer clientes aos seus pontos de venda.

Conclusão

O Digital vai acabar com os concessionários, tal como os conhecemos hoje. Mas os construtores também vão dar uma ajuda. Afinal, a Internet está a dar-lhes a oportunidade que não tiveram há cem anos: a venda direta, sem intermediários. Ficam a ganhar as marcas e os compradores, ficam a perder os intermediários.

Francisco Mota