25/10/2019 Mobilidade. Todas as marcas falam do assunto. Em vez de vender carros, querem vender soluções de mobilidade. Será o caminho certo?…

 

Por vezes fico com a impressão de que há um discurso padrão, escrito por algum guru da comunicação e fornecido a todas as marcas de automóveis que queiram falar de mobilidade.

A história que os CEO contam é sempre tão semelhante que mais parece ter sido combinada.

Mas não acredito em grandes combinações na indústria automóvel, sobretudo na europeia, onde a competição entre elas ainda as ocupa mais do que olhar para o futuro em conjunto.

Mobilidade, para os construtores de automóveis quer dizer uma só coisa: tratar de arranjar uma maneira de se manterem vivos e relevantes, numa sociedade que está mesmo a mudar, por vezes para áreas que não os favorecem.

A pirâmide do desejo

Ao longo dos anos, as marcas de automóveis assentaram a sua estratégia no sonho dos consumidores em terem um carro, depois um carro melhor e depois um ainda melhor. Melhor queria dizer mais luxuoso, mais rápido, mas desportivo… mais caro.

Todos arquitetaram a sua oferta em torno de uma estrutura piramidal, com os carros mais desejados e inacessíveis no topo, a alimentar o sonho dos compradores dos modelos mais baratos.

Depois era uma questão de ir mantendo algum desse sonho pela pirâmide abaixo, em direção aos carros mais baratos e populares, mas que pudessem ter ainda um pouco da ilusão dos modelos de topo.

O esquema é muito fácil de perceber quando olhamos para as marcas ditas Premium, sobretudo à medida que foram sendo obrigadas a entrar em segmentos cada vez mais baratos, para manterem o seu modelo de negócio saudável.

Consumidores estão a mudar

Mas os desejos dos compradores estão a mudar, sobretudo os dos compradores mais novos. Ter um carro próprio para ganhar liberdade de movimentos, deixou de ser o sonho de muitos adolescentes.

Um “smartphone” de topo e uma ligação ultra-rápida à Internet permitem-lhes estar em contacto e “ir” a sítios onde os adolescentes da minha geração nunca puderam ir.

Nem vale a pena começar agora a defender a tese de que “no meu tempo é que era bom”, pois isso não leva a lado nenhum e só mantém os olhos fechados para o que está a acontecer.

A “indústria do CO2”

A pressão política e o rápido crescimento da chamada “indústria do CO2″ passa a mensagem de que os automóveis com motores térmicos são maléficos e indesejáveis.

Mesmo se as contas da poluição, do “poço à roda”, não o provam. Mas isso já é uma guerra perdida.

A verdade é que os mais novos não olham para o automóvel convencional como um objeto de desejo, olham como um objeto a evitar.

Os construtores de automóveis, estão a perceber isso, com vários anos de atraso. A indústria automóvel sempre foi muito lenta a reagir à mudança, muito conservadora, por vezes mesmo retrógrada.

Muitas das mudanças que está a fazer agora, à pressa, já as devia ter feito há muito, mas estava ocupada com outras coisas, menos relevantes.

A mudança na Toyota

Vem isto a propósito da minha recente viagem ao Japão, para a reportagem do Salão de Tóquio 2019, que pode ver neste link:

Salão de Tóquio: reportagem das “loucuras” dos japoneses

Em paralelo ao evento, tive a oportunidade de participar numa conferência da Toyota, o maior construtor de automóveis do mundo, tecnicamente “ex-aequo” com a Volkswagen, nas vendas.

Nesse forum, foi discutida a anunciada mudança que a Toyota está a fazer, “queremos passar de uma companhia que vende automóveis, para uma companhia que vende soluções de mobilidade” foi a frase-chave.

Conhecedores das mudanças de hábitos dos consumidores mais novos, que preferem usar um meio de transporte público ou uma aplicação de smartphone, a ter o seu automóvel parado à porta de casa, os homens da Toyota traçaram um plano.

A fórmula antiga “faliu”

Não é o primeiro plano de mobilidade de que tomo conhecimento, mas será o que parece mais abrangente e o mais ambicioso, desde logo pela coragem de dizer que querem construir um novo modelo de negócio.

Fazer dez milhões de carros por ano, em fábricas que ocupam milhares de trabalhadores, para os colocar num stand (físico ou digital) à espera que apareçam os compradores, é uma fórmula à beira da falência, um negócio sem futuro, dizem.

Escrevi sobre isso aqui:

Concessionários à beira do abismo: quem os vai empurrar?…

Claro que ninguém sabe dizer exatamente quando chegará esse futuro. As flutuações das vendas mundiais de automóveis ainda estão mais ligadas ao desempenho da economia do que a qualquer outra coisa.

Mas o dia vai chegar e será sempre mais cedo do que o esperado.
E o plano passa, como não poderia deixar de ser, pelos carros elétricos.

O futuro está nos elétricos

Por mais estudos que sejam difundidos a dizer que os elétricos não são obrigatoriamente menos emissores de CO2, considerando o processo de construção das baterias, a verdade é que o comboio da eletrificação já saiu da estação: quem não o apanhou a tempo, vai ter de saltar para dentro dele em andamento.

O novo plano de negócio da Toyota para carros elétricos começa pela observação da realidade atual: os elétricos só se vendem devido aos incentivos fiscais (e outros) que os Estados estão dispostos a dar. E são poucos os compradores, pois continuam a ser caros.

Então como resolver o problema? Em primeiro lugar, a utilização do automóvel vai passar cada vez mais pelo chamado “car sharing” em que o utilizador só utiliza um carro quando dele precisa.

Estes esquemas já existem há alguns anos, alguns até já faliram. Mas foram montados sempre como operações de pequena dimensão e sendo somados ao parque que já existe nas cidades. Muitas vezes, vieram agravar os congestionamentos e, sobretudo, o estacionamento.

Mas é uma solução boa para manter os volumes de produção dos construtores, até porque a velocidade de degradação dos automóveis usados em “car sharing” é muito maior, encurtando o seu ciclo de vida útil.

Contudo, é preciso encontrar maneiras mais eficazes de colocar estes sistemas a funcionar, mas isso não chega, são precisas outras fórmulas.

Roteiro para a eletrificação

A Toyota tem um roteiro para a melhoria da eletrificação, que começa com o urgente desenvolvimento das baterias, depois por esquemas de venda e de leasing mais atrativos para o cliente, associando cada vez mais serviços relacionados, ou não.

Depois vem a parte mais difícil, que é a reutilização da bateria, quando já não serve para propulsionar um carro, mas pode servir para aplicações estáticas. Finalmente, desenvolver maneiras mais eficazes e económicas de fazer a sua reciclagem.

Como plano, até agora, não traz muito de novo. Mas há mais, há a preocupação com a mobilidade dos extremos demográficos: os jovens e os idosos, mas também as pessoas com dificuldades de locomoção.

Para os servir, a Toyota está a desenvolver um conjunto de veículos que se complementam.

Desde pequenos citadinos, que podem ser usados por quem ainda não tem carta, ou que já não tem, a uma série de veículos complementares à utilização dos transportas públicos.

É o caso das trotinetes de três rodas e os motociclos, que não exigem capacidade de equilíbrio. Pode ver aqui todos os veículos que a Toyota mostrou em Tóquio:

Salão de Tóquio: Toyota mostra Mirai e outras “coisas”

Mobilidade invertida

Mas a questão da mobilidade pode ser abordada de outra forma: em vez de ser o indivíduo a deslocar-se a uma loja, porque não pode ser a loja a deslocar-se ao indivíduo?

Um dos módulos de transporte que foram apresentados, o e-Palette, pode ser transformado numa oficina ambulante, numa farmácia ambulante ou em qualquer outro tipo de negócio que pode ser chamado através de uma aplicação para “smartphone”.

Outra das soluções apresentadas, mostrava um pequeno veículo elétrico que podia adotar três configurações no interior: condução, escritório e descanso.

Seria o cúmulo da deslocalização do local de trabalho, a pensar em profissões liberais: em vez de o cliente ir ao escritório, é o escritório a ir ao cliente.

Conclusão

A mudança de filosofia da companhia passa pela abertura à produção de novos tipos de veículos, que complementam o automóvel, naquilo a que se chama “a última milha.”

Para conseguir atingir esse objetivo rapidamente, foi preciso que a Toyota se decidisse a colaborar com cada vez mais parceiros, os melhores colocados para ajudar a resolver questões particulares.

Mas é também a oportunidade de abrir o seu conhecimento a outros construtores, com a oferta de partilha de arquiteturas e de abertura de patentes. Para uma cultura (do país e da empresa) tão conservadora, imagino que isto possa ter sido um dos passos mais complicados, mas certamente um dos mais eficientes.

Francisco Mota

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