Chuva, chuva e mais chuva! O Autódromo do Estoril estava debaixo de uma meteorologia que não encorajava a estar ali sentado a assistir ao Grande Prémio de Portugal de 1985. Mas o entusiasmo pelos automóveis, pelas corridas e pela Fórmula 1 eram demasiado fortes para ser abalado por uma mera carga de água caída do céu.
O meu pai tinha conseguido arranjar dois bilhetes para o fim-de-semana completo e eu podia usá-los, com uma condição: tinha que levar comigo um amigo mais velho. O meu vizinho Daniel gostava mais ou menos de carros, mas a ideia de ir ver o GP à borla não lhe deve ter parecido má de todo, tanto mais que haveria por lá outras belezas para apreciar, que não propriamente as de quatro rodas.

Equipamento completo

Eu ia vestido a rigor, com um anorak colorido e cheio de emblemas bordados, que eu tinha pedido à minha mãe para coser. Outro amigo emprestou-me a sua máquina fotográfica, uma “reflex” com um pequeno zoom, para eu apanhar os carros na pista e nas boxes. É que os bilhetes eram para a bancada B, mesmo em frente das boxes e no sitio em que os F1 atingiam a velocidade máxima, no final da reta da meta, antes de travarem para a primeira direita. Com a minha experiência limitada como fotógrafo amador, apanhar algum carro seria um milagre. Mas como ainda estávamos na era dos rolos de negativo, essa eventual deceção só chegaria uns dias mais tarde, depois de revelada a película. Até lá, ficava sempre a esperança de ter feito uma foto espetacular, com o carro enquadrado, iluminado e perfeitamente focado. Talvez até desse para fazer mais um poster e pendurar na sobrecarregada parede do meu quarto…

O imprescindível farnel

Do “equipamento de combate”, como não podia deixar de ser, fazia parte o farnel que a minha mãe tinha preparado para eu levar na mochila. Dados os preços proibitivos praticados nos bares da bancada B, estava fora de questão levar dinheiro para lá ir comer. Umas sandes de fiambre, maçãs e bolachas eram os nossos mantimentos para cada um dos três dias, acompanhados por água e sumos. Para mim, a alimentação era totalmente irrelevante nesses dias, eu queria era ver, ouvir, cheirar os carros de F1.
Para chegar ao autódromo, eu e o Daniel fizemos o que fazia toda a gente: apanhámos o comboio para Sintra e depois um dos autocarros especiais que a Rodoviária Nacional tinha organizado durante os dias do Grande Prémio. Nada mais fácil. Pelo caminho ainda houve tempo de comprar a edição especial do “Autosport” e ficar por dentro das últimas novidades, antes da corrida. A Internet e os telemóveis ainda nem eram um sonho.

Achava que o Ayrton Senna da Silva, um dia, acabaria por ir parar à Ferrari

Como muito outros da minha idade, desde miúdo que torcia pela Ferrari. Não nego que fui ao Estoril na esperança de ver um dos carros vermelhos ganhar. Mas também tinha uma admiração grande pelos Lotus pretos e dourados, desde os tempos do Fittipaldi. E, como achava que o Ayrton Senna da Silva, um dia, acabaria por ir parar à Scuderia, também torcia um bocadinho por ele.

Grandes e pequenos

Dos três dias sentado na bancada B, lembro-me bem de olhar para as boxes e de ver as diferenças entre as equipas mais famosas, que ficavam logo nas primeiras garagens, em frente à bancada A e das mais pequenas e pobres como a Spirit ou a RAM, que ficavam à minha frente. Os mecânicos destas equipas parece que trabalhavam em câmara lenta, que nunca sabiam exatamente o que fazer a seguir. Pelo contrário, os da McLaren, Ferrari e Williams tinham sempre um plano, assim que os seus carros entravam nas boxes, vindos de mais uma sessão de treinos livres: saltavam-lhe em cima numa coreografia perfeitamente ensaiada.

Na mochila não tinham vindo os tampões para os ouvidos, por isso, ao fim de cada dia, tinha os tímpanos a zunir e só conseguia comunicar aos gritos

Claro que, mesmo com o meu entusiasmo de miúdo, ficaram na memória alguns momentos de tédio, à espera que os carros fossem para a pista, depois de algumas das sessões terem começado há muitos minutos, com toda a gente à espera que a chuva parasse.

A excitação dos motores a gritar

Mas de cada vez que um dos pilotos de topo se aproximava do final da via das boxes e acelerava a fundo para entrar na pista, o meu coração batia mais depressa com a excitação. Na mochila não tinham vindo os tampões para os ouvidos, por isso, ao fim de cada dia, tinha os tímpanos a zunir e só conseguia comunicar aos gritos. Ainda contei os tostões para ver se dava para os comprar, às meninas que os andavam a vender em cestas, pela bancada. Mas o dinheiro estava contado para os transportes de regresso a casa.
Depois daquele primeiro impacte, do primeiro treino de sexta-feira, de ver e ouvir o primeiro carro a sair para a pista, o segundo grande momento foi a sessão de qualificação de sábado. Ayton Senna da Silva tirava a “pole position”, batendo os meus adorados Ferrari… Mas ele merecia, e eu sabia disso.

O brasileiro deu um minuto de avanço no final, mas saiu do carro estafado.

Finalmente a corrida de domingo. A chuva era a aliada perfeita do Lotus e de Senna da Silva. A partida foi emocionante, com todos os carros a querer chegar à frente logo na primeira curva, alguns a pisar a relva bem junto da bancada onde eu estava. Um ruído ensurdecedor! Um flash de cor que deixava para trás uma nuvem de água pulverizada. A corrida não era difícil de acompanhar, do local onde estava, mas como ainda não havia painéis de vídeo gigantes, limitava-me a ver os carros a passar na reta e Ayrton a afastar-se cada vez mais. O Ferrari de Alboreto não conseguia fazer nada e eu resignei-me com a anunciada derrota dos meus favoritos. O brasileiro deu um minuto de avanço no final, mas saiu do carro estafado.

Conclusão

Depois dos hinos e do champanhe, sem pressas, fiz-me à estrada de volta para casa, com os ténis a chocalhar da água que tinham apanhado. Ayrton ganhava o seu primeiro GP, um marco histórico hoje recordado com reverência, mas a mim isso pareceu-me a coisa mais normal do mundo.