“Crónica à 6ª Feira, 31/08/2019 – O maior “patrão” da indústria automóvel moderna, Ferdinand Piëch, morreu. Não deixou nada por fazer, mas também não deixou muitos amigos.”

 

São poucas as entrevistas individuais que Ferdinand Piëch “concedeu” à imprensa ao longo da sua liderança do grupo VW. Menos ainda a jornalistas que não fossem de língua alemã. E quando o fazia, tornava a ocasião num ritual intimidatório, disse quem teve o privilégio de falar com ele em “one-to-one”.

Outros episódios, que mostravam a postura altiva e dominadora do austríaco, foram bem mais públicos. Por exemplo as suas deslocações ao salão de Frankfurt.

Tudo começava com a conferência de imprensa do grupo VW, em que ele geralmente não falava, limitando-se a ocupar a primeira fila da plateia, com o seu sorriso enigmático nos lábios e a sua esposa de braço dado.

Assisti a algumas destas conferências, logo cedo pela manhã e era óbvio o”respeito” com que os oradores se referiam a Piëch. Em alguns, sentia-se-lhes mesmo o “medo” na voz. O medo de falhar alguma coisa, de não fazerem uma apresentação perfeita e de perderem o emprego.

Assim que acabava a sessão e Piëch se levantava, as televisões aproximavam-se à espera de algum comentário ou de alguma frase significativa que pudesse abrir os telejornais. Quase sempre sem sucesso.

Liderar pelo medo

Piëch preferia dizer o que tinha a dizer nos conselhos de administração, que imagino serem sessões de medo e angústia para muitos dos participantes.

Era difícil contrariar as opiniões de Piëch, um homem que tinha um passado na área técnica como muito poucos engenheiros da indústria, menos ainda os que chegaram a CEO.

As suas convicções, por vezes a raiar a teimosia, seriam certamente um resultado do ambiente em que cresceu. Um ambiente exigente sob muitos pontos de vista.

Um Porsche sem o apelido

Ferdinand Piëch era neto de Ferdinand Porsche, o homem que tinha projetado o primeiro VW Carocha para Hitler motorizar a Alemanha e que, por isso, seria preso no pós-guerra.

Mas era filho da filha de Porsche, que se tinha casado com Anton Piëch. Era um Porsche, mas de apelido Piëch e isso fazia toda a diferença, comparando com os seus primos, filhos do filho homem do seu avô, Ferry Porsche, todos eles com o apelido “certo”.

Piëch sempre teve que mostrar mais do que os outros que “merecia” a confiança do seu tio para ocupar lugares de relevo na empresa familiar. Terá sido isso que o tornou mais forte e lhe aguçou o humor sarcástico, que, obviamente, não era do gosto dos seus subordinados.

Da escola para a Porsche

Sem surpresa, Piëch, nascido em Viena, licenciou-se em engenharia mecânica e integrou de imediato o departamento de competição da Porsche, trabalhando no desenvolvimento do 906 e sucessivos protótipos de circuito até ao famoso 917.

Nas palavras do próprio, o 917 foi “o maior risco que alguma vez corri – até podia ter perdido o emprego!” Na verdade, aquele que ainda hoje é visto como um dos carros de competição mais importantes de sempre, foi construído em muito pouco tempo, com muito poucos testes e partindo de alguns componentes já existentes.

Em cima disso tudo, as primeiras corridas mostraram que a aerodinâmica tinha problemas sérios e teve que ser radicalmente transformada.

Mas os sucessos posteriores apagaram tudo isso da memória coletiva, como é lógico.

Da Porsche para a Audi

Quando a família Porsche decidiu que nenhum membro devia ocupar lugares de destaque na companhia, para evitar guerras internas que poderiam prejudicar o negócio, Piëch mudou-se para a Audi em 1972.

Começou por ser responsável pela engenharia e pelo lançamento dos modelos 80 e 100, nos anos setenta, mas continuava interessado na competição, mesmo depois de ser CEO.

A ideia de usar um motor de cinco cilindros decorreu de um projeto que ele liderou enquanto trabalhou numa empresa independente, que forneceu um motor desse tipo à Mercedes-Benz. O cinco cilindros em linha tornaria-se num ícone da mecânica dos Audi.

Mas a ideia do famoso Audi quattro surgiu num teste de Inverno, quando um dos engenheiros demonstrou que um dos carros de apoio, um VW Iltis 4×4, era mais rápido que os protótipos de tração à frente que estavam a ser testados na neve.

Piëch nunca reclamou para si a origem do conceito, aliás ele sempre disse que “a sua melhor qualidade não era desenhar carros ou motores, mas dirigir equipas de técnicos e motiva-los a dar o melhor.”

E da Audi para a VW

Depois de o quattro demonstrar a sua superioridade nos ralis e ter mudado a disciplina para sempre, colocando a Audi no caminho certo para se equiparar à Mercedes-Benz e BMW, Piëch mudou-se para a Volkswagen em 1993.

Chegou a presidente do conselho de administração, sucedendo a Carl Hahn e foi aí que começou verdadeiramente a sua carreira com líder da indústria.

A VW estava a três meses de entrar em falência, mas Piëch contribuiu para inverter a situação e dar à marca uma tendência de crescimento como nunca tinha tido.

A sua estratégia assentou na subida de qualidade de construção e da qualidade apercebida pelo cliente. Mas sobretudo na excelência da engenharia, que permitiu fazer subir o estatuto e os preços dos Volkswagen e Audi.

Muitas tecnologias inovadoras

Foram muitas as áreas nas quais a VW apostou e ganhou, como a injeção direta, os motores Diesel, as caixas de dupla embraiagem e muitas outras tecnologias, algumas das quais evoluíram até aos nossos dias e “obrigaram” as outras marcas a seguir a VW.

A sua estratégia passou também pela expansão, com a compra de outras marcas, como a Lamborghini, a Bugatti e a Bentley, mas falhou clamorosamente a Rolls Royce, perdendo-a para a BMW.

A vingança dos primos

Anos mais tarde, aconteceu o caso Porsche. Depois de a marca de carros desportivos ter tentado comprar a VW, quatro anos depois acabou por acontecer o oposto, com Ferdinand Piëch a vingar-se do seu primo Wolfgang Porsche.

Os projetos falhados

São conhecidos alguns dos seus projetos megalómanos, nascidos da sua irrascibilidade. O primeiro foi o carro 3 litros, o Lupo Diesel 3L que só consumia 3,0 litros/100 km e que chegou mesmo à produção, para espanto de muitos.

Depois o esquecido XL1, o carro de 1 litro, também esteve à venda, apesar de poucos o terem comprado, dado o seu preço exorbitante e dificuldade de utilização.

O Phaeton foi também uma embirração sua, que nunca se conseguiu estabelecer entre as limousinas de luxo e saiu de produção, tal como o Audi A2, um utilitário em alumínio que só deu prejuízo. Mas o caso mais espetacular foi o Bugatti Veyron.

O melhor do mundo

O “briefing” de Piëch era que o hiperdesportivo tinha que ser o carro mais rápido e mais potente à venda, com 1001 cv e 400 km/h de velocidade máxima, movido por um motor de 16 cilindros, um dos seus eternos sonhos.

Um sonho que vinha dos tempos do seu projeto de equipar o 917 com um motor de igual número de cilindros ter sido abandonado, em favor da sobrealimentação.

O Veyron tinha tudo isso, levou os engenheiros ao desespero, levou os fornecedores de pneus a dizer que não conseguiam fornecer pneumáticos para um carro tão pesado e tão rápido.

Mas a verdade é que o Veyron entrou em produção e depois evoluiu para o atual Chiron, ainda mais potente. Claro que, tudo isto, à custa de um prejuízo que nunca foi revelado, muito menos recuperado.

De CEO a “chairman”

Em 2002, Piëch chegou à idade de se retirar como CEO da VW, mas passou a “chairman” do conselho de supervisão, continuando a “mandar” na companhia até que saiu definitivamente em 25 de Abril de 2015.

A sua saída não foi ingénua. Depois de, no princípio desse ano, ter tentado afastar o CEO da VW, Martin Winterkorn, acabou por sair antes de ser ele afastado.

Passou, por meses, incólume ao caso “Dieselgate”, pois nunca ninguém teve a coragem de insinuar que pudesse ter tido alguma coisa a ver com o assunto.

Mas muitos dizem que o caso aconteceu devido ao estilo de gestão baseado no medo, que Piëch instalou na companhia durante anos.

Piëch dizia que não admitia que algum dos seus subordinados cometesse duas vezes o mesmo erro e simplesmente despedia-o. Winterkorn acabou empurrado pela enxurrada do Dieselgate.

São bem conhecidas as suas guerras internas que levaram à eliminação da empresa de nomes como Bernd Pischetsrieder, o seu sucessor como CEO e depois do CEO da Porsche, Wendelin Wiedeking.

Mil milhões e 12 (13) filhos

Piëch era disléxico, ateu e tinha grandes dificuldades no convívio social, que evitava a todo o custo. Morreu a 24 de Agosto em Salzburg, com 82 anos, após ter jantado com a sua mulher num restaurante.

Deixou uma fortuna pessoal estimada em mil milhões de euros à sua mulher, com a condição de não se poder voltar a casar e aos seus 12 (algumas fontes dizem que são 13) filhos de quatro mulheres.

Conclusão

Bob Lutz, um dos mais carismáticos líderes da indústria, classifica-o como um “déspota brilhante”. Para a história deixou a VW no topo dos construtores mundiais e também uma das suas frases mais conhecidas: “a minha necessidade de harmonia é limitada.”

Francisco Mota

 

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