10/01/2020 – Ao fim de 14 meses de sucessivas detenções no Japão e após uma fuga para o Líbano ao estilo 007, Carlos Ghosn falou pela primeira vez em público. Explicou a sua detenção ao detalhe e quem sai pior de toda esta história parece ser a justiça japonesa.

 

Na semana passada, após a espetacular fuga de Carlos Ghosn do Japão para o seu país de origem, o Líbano, foi marcada uma conferência de imprensa para 8 de Janeiro, em Beirute, onde o ex-líder da Aliança Renault/Nissan/Mitsubishi prometia contar a sua versão das acusações que lhe faz a justiça japonesa.

A conferência foi realizada no clube de imprensa local e sob fortes medidas de segurança. Durante uma hora e meia, Ghosn explicou tudo, mas mesmo tudo, exibindo documentos e citando nomes.

Só houve duas coisas que se recusou a dizer: como organizou a fuga e quem são os nomes dos indivíduos ligados ao Estado japonês que considera terem participado naquilo que classifica como uma perseguição política. Isto, porque não quer pôr as autoridades libanesas numa situação desconfortável, diz.

Aditamento ao “guião” do filme

Antes da análise à conferência, ou pelo menos aos temas mais importantes, será interessante referir que foram conhecidos mais alguns detalhes da fuga, necessários para atualizar o “guião” do filme “Carlos 007 Ghosn – a fuga impossível” que sugeri na última Crónica à 6ª Feira.

Parece agora seguro que as câmaras de vigilância de sua casa o filmaram a sair sozinho no dia 29 de Dezembro, usando um chapéu, óculos escuros e uma daquelas máscaras brancas que os japoneses usam para não apanhar doenças.

Depois, há relatos de que se terá juntado a um grupo de operacionais, especialistas no resgate de reféns em países hostis.

Dentro da caixa

Seguiram no comboio-bala para o aeroporto de Osaka, onde Ghosn terá sido colocado dentro de uma caixa de material musical (afinal não era a proverbial caixa do violoncelo…) na qual tinham sido feitos furos para poder respirar.

A caixa teria dimensões demasiado grandes e, por isso, não terá passado pelo “raio-x” da segurança, antes de ser carregada no jato privado que o levou para Istambul. Lá chegado, passou para outro jato privado que o levou para Beirute.

Todos estes detalhes só melhoram o guião do filme. Quem o realizar não terá que adaptar ou inventar nada. É a realidade a superar a ficção.

A conferência de Beirute

Mas vamos então à conferência de imprensa que Goshn dividiu em cinco áreas, que julga as mais relevantes: por que aconteceu este caso, como aconteceu, qual a acusação inicial, quais as outras acusações e o estado da Aliança.

Se quiser gastar 1h30 da sua vida a ver um documento que vai ficar para a história, poderá seguir este link do “Telegraph” e assistir a toda a conferência:

Por que lhe aconteceu tudo isto?

Ghosn nega todas as acusações que lhe foram feitas e mostrou documentos na conferência de imprensa que julga provarem isso mesmo. Por isso encontra dois motivos para lhe ter sido movida esta “perseguição”, despoletada por uma denúncia anónima, saída da Nissan.

O primeiro está ligado aos resultados da Nissan. Depois de ter deixado de ser CEO da Nissan, foi para a Mitsubishi, em 2016, mas no ano seguinte os resultados da Nissan começaram a descer. O seu sucessor não era capaz de melhor.

O segundo motivo é este. Na segunda metade de 2018, o governo francês decide duplicar o controlo da Renault sobre a Nissan e isso caiu mal aos japoneses.

Ghosn estava a finalizar a passagem da Aliança a uma fusão completa. Os altos executivos da Nissan encaravam essa medida como uma perda do seu poder nos destinos da marca. Por isso decidiram que a melhor maneira de impedir a fusão seria retirar Ghosn de cena.

Como aconteceu?

O ex-lider da Aliança acusa o ministério público japonês de se ter aliado a estes dirigentes da Nissan e de ter construído um caso para o incriminar, sem fundamentos.

Ghosn diz que, no Japão, a justiça parte do presunção de culpa, em vez da presunção de inocência e afirma que a taxa de 99,4% de condenações prova isso mesmo.

As acusações de que foi alvo

Na conferência, rebateu todas as acusações de que é alvo mas apenas me detenho aqui numa delas, a que diz que Ghosn não declarou a atribuição de uma compensação.

Segundo ele, essa compensação, que seria um prémio de desempenho, ainda não tinha sido confirmada pelo conselho de administração, nem definido o seu valor, nem quando ou como seria atribuída. Por isso, diz ele, como pode ser acusado de algo que não aconteceu?… São as suas palavras.

Na conferência disse os nomes dos seis executivos japoneses da Nissan que estiveram na origem desta operação, mas também aponta culpas à firma de advogados da marca e ao ministério público.

A detenção encenada

Diz que toda a trama foi armada secretamente e que foi apanhado de surpresa quando, no dia 18 de novembro de 2018, foi preso no aeroporto, quando regressava ao Japão.

Cinco horas depois, já estava fechado numa solitária, sem culpa formada por uma acusação que, diz, não ser crime em muitos países.
Afirma que ficou a saber mais tarde terem existido reuniões entre os executivos de topo da Nissan e do ministério público para encenar a sua prisão.

As acusações seguintes

Depois falou das outras acusações, que surgiram para o manter preso. Em detalhe, falou dos incentivos considerados exagerados que foram dados aos concessionários do médio-oriente para melhorar as vendas, num território em que a Nissan tinha resultados fracos, comparativamente à Toyota. Apresentou documentos para provar a transparência das operações.

Falou também da chamada “CEO reserve”, uma linha do orçamento da Nissan de que mostrou documentos, em que todos os movimentos eram aprovados por vários altos quadros da Aliança.

Também focou a reunião com parceiros da Aliança e a festa do seu próprio casamento que foi realizada no palácio de Versalhes, em Paris. Mais uma vez, mostrou que tudo se passou ao abrigo de permutas aprovadas pela Nissan.

Falou também das casas no Brasil, Líbano e EUA, todas propriedade da Nissan e usadas por si com autorização da companhia. E também da passagem do seu salário para dólares, sem encargos adicionais para a Nissan.

Assassinato de carácter

No final, conclui dizendo que se tratou de uma perseguição, com libertação de notícias falsas para a opinião pública, com o intuito de fazer um “assassinato de caráter”.

A prova disso, resume-a citando notícia da Bloomberg em que é dito que a Nissan terá já gasto 200 milhões de euros no caso contra si, o que não fará sentido, na sua opinião, pois a Nissan acusa-o de infrações num total de apenas 20 milhões de euros, dez vezes menos.

O estado da Aliança

Para concluir a sua comunicação, Ghosn citou a quebra do valor em bolsa das ações da Renault (5 mil milhões) e da Nissan (10 mil milhões) desde que foi detido. Num período em que “a média da indústria foi uma subida de 12%, a Renault desceu 35%”.

Ghosn diz que a Aliança já não funciona. Não há crescimento, não há sinergias e não há novas tecnologias. Diz não existir uma visão estratégica e acusa os japoneses de terem boicotado a fusão com a FCA, que, afirma, estava praticamente acertada.

Ataque aos direitos humanos

Os dados que dá sobre a sua detenção, que durou um total de 130 dias, diz provarem uma violação dos direitos humanos.

Esteve detido numa solitária interna, sem janelas e sem sol, iluminada dia e noite. Só podia ir ao pátio da prisão 30 minutos por dia, mas não durante os fins de semana, em que não tinha nenhum contacto humano.

Diz ter passado seis dias, durante o Natal e passagem de ano 2018/2019, sem qualquer contacto humano a não ser a entrega de comida.

Só podia tomar chuveiro duas vezes por semana e só podia tomar os medicamentos fornecidos pela farmácia da prisão, não os prescritos pelo seu médico.

Se precisasse de falar com alguém, só tinha um interprete uma vez por semana. Finalmente, os interrogatórios duravam oito horas e podiam ser a qualquer hora do dia ou da noite, sem a presença do seu advogado.

Diz que ouvia nesses interrogatórios sempre a mesma frase: “ou confessa, ou isto vai piorar para si e depois vamos atrás da sua família”.

Morrer na cadeia no Japão

Depois de ter consultado os seus advogados sobre o que poderia esperar da justiça japonesa, eles disseram-lhe que tinha pela frente, pelo menos, mais cinco anos de indecisão até ser marcado o julgamento.

Por isso tomou aquela que diz ser a decisão mais difícil da sua vida e sair do Japão: “a opção era morrer na cadeia no Japão, ou sair do país.”

Ghosn diz que não teme um julgamento justo, mas que nunca o teria no Japão.

Reação da Nissan

Após a conferência de imprensa, a Nissan emitiu um comunicado em que mantém que a investigação interna que fez, levou à conclusão que Ghosn praticou atos que lhe impedem de continuar a estar ligado à Nissan.

Entretanto, o Japão pediu à Interpol mais um mandato de busca contra a mulher de Ghosn, alegando declarações que podem ter sido falsas, durante um interrogatório a que foi sujeita no Japão, há nove meses.

Ghosn diz que o facto de esse mandato ter aparecido exatamente na véspera desta conferência de imprensa não é uma coincidência.

Conclusão

Este é um caso único na história da indústria automóvel, movido contra um homem que foi idolatrado durante 17 anos no Japão, do qual foram escritos mais de 20 livros sobre o seu tipo de gestão e que, de um momento para o outro, passou a ser acusado de “frio, ganancioso e ditador”. Resta esperar pelas cenas dos próximos episódios.

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Carlos 007 Ghosn: a fuga impossível