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Crónica – A ilusão dos combustíveis sintéticos

Fábrica-piloto da HIF no Chile

A Porsche é das poucas marcas interessadas nos e-fuels

Eletricidade é obtida de fonte eólica

Combustíveis sintéticos são perfeitos para os clássicos

O troféu monomodelo Porsche Supercup usa combustíveis sintéticos

A fábrica do Chile da HIF produz por ano apenas 130 000 litros

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31/03/2023. O governo alemão trouxe de volta à ribalta o tema dos combustíveis sintéticos, levando a Comissão Europeia a considerar a sua aceitação, mesmo após a prevista proibição da gasolina em 2035. Os governantes alemães dizem que “salvaram” o motor a combustão, mas não estarão apenas a fazer aquilo em que são melhores: política pura?

 

Após terem aprovado todos os (muitos) passos que levaram à votação final da lei de proibição de motores a combustão na Europa a partir de 2035, o governo alemão, numa atitude sem precedentes em toda a história da União Europeia, deu o dito por não dito , à última hora recuou e a votação não se fez.

Mas foi um recuo do tipo “agarrem-me, se não atiro-me” pois usou a aceitação dos combustíveis sintéticos, após 2035, como moeda da troca. A chantagem do governo alemão face à Comissão Europeia (os governantes alemães chamam-lhe negociação) foi muito simples: aprovavam a lei da proibição dos motores a combustão a partir de 2035, se a CE aceitasse a exceção dos motores que utilizem combustíveis sintéticos.

A fábrica do Chile da HIF produz por ano apenas 130 000 litros

Bastou a CE dizer que iria considerar essa exceção, para o governo alemão voltar para casa a dizer que tinha “salvo o motor a combustão”. Uma propaganda que terá acalmado os menos informados entre os milhões de pessoas que trabalham na indústria automóvel alemã e que estão a ver postos de trabalho a desaparecer com a eletrificação.

Política pura?

Como se previa desde início, tratou-se apenas de uma manobra de política pura, para contrariar a queda nas sondagens que a coligação governativa alemã tem estado a sofrer nos últimos tempos, Se chegou para atingir os objetivos políticos, ainda teremos que ver.

Para já, não há notícia de que algum construtor tenha alterado os seus planos de fechar fábricas ou de as converter para produção de veículos elétricos, por causa da “vitória” do governo alemão. Aliás, toda esta iniciativa do governo alemão foi recebida com a maior indiferença pelos construtores. O melhor comentário que obtive sobre o assunto foi do CEO da Seat/Cupra quando disse que “não nos metemos em política.”

Empenhados na eletrificação

E os construtores europeus não poderiam reagir de outra forma, empenhados que estão na eletrificação dos seus modelos, a caminho da massificação dos modelos elétricos a bateria (BEV – Battery Electric Vehicles). Todos os construtores estão neste barco e não o vão abandonar, menos ainda na região Europa, que lidera o processo. Já gastaram demasiado dinheiro para pensar em alternativas.

Fábrica-piloto da HIF no Chile

A realidade sobrepõe-se a qualquer tipo de convicções. E a realidade mostra que são muito poucos os construtores que estão vagamente interessados em combustíveis sintéticos. Tanto quanto sei, as únicas marcas que mostraram alguma curiosidade foram a BMW, Ferrari e Porsche. E todas elas têm programas de eletrificação mais do que definidos.

O caso da Porsche

O caso da Porsche tem sido o mais falado, porque a marca decidiu divulgar o seu envolvimento neste assunto. Numa pequena franja da sua atividade, os combustíveis sintéticos podem ter utilidade, por exemplo na competição. Enquanto o seu famoso troféu monomodelo Supercup não mudar para os elétricos, os motores dos 911 vão passar a usar combustível sintético.

Outra área de interesse para a Porsche, até pela enorme percentagem de modelos antigos da marca que ainda estão em condições de circular, será exatamente a dos carros clássicos. Fazer contas a estas duas aplicações é ridículo, mesmo somando algum modelo térmico que possa permanecer em catálogo após 2035.

A fábrica-piloto do Chile

Os mais interessados no assunto talvez já tenham ouvido falar de uma fábrica-piloto para a produção de combustíveis sintéticos que a Porsche abriu em 2022 na Patagónia, Chile. Uma fábrica experimental construída para desenvolver o processo e não para gerar volume de produção.

Eletricidade é obtida de fonte eólica

Só que, essa fábrica não é da Porsche. Pertence à empresa chilena HIF (High Innovative Fuels). A Porsche limitou-se a comprar 12% da “holding” HIF Global LLC, por 100 milhões de dólares. Para vermos a irrelevância desta operação, basta comparar com o que a Porsche está a gastar na eletrificação da sua atividade: só em 2022 foram 6 mil milhões de euros.

Nem rentável, nem limpo

Os números mostram a pouca importância que a Porsche dá ao assunto, tendo até afirmado publicamente que não esteve na origem das manobras do seu governo nacional. E as razões são simples de perceber: o processo de produção dos combustíveis sintéticos não é rentável. Nem resolve o problema da poluição local.

No Chile, a fábrica-piloto sita em Haru Oni, uma zona muito ventosa durante 270 dias por ano, usa um gerador eólico para obter energia elétrica “verde”.

Essa energia é depois usada para fazer a eletrólise da água e separar o Hidrogénio do Oxigénio. O Hidrogénio é depois combinado com o CO2 captado da atmosfera para formar e-metanól, o equivalente ao crude do petróleo.

Muito complexo

Mas esta parte da extração do CO2 da atmosfera, ainda não está sequer a funcionar. Para já, a fábrica vai buscar o CO2 como um subproduto de uma fábrica de cerveja local… Lá se vai a ideia base dos combustíveis sintéticos: usar CO2 que já existe na atmosfera, para que depois, quando sai pelo tudo de escape, seja o mesmo CO2, não aumentado a quantidade que existe na atmosfera.

O troféu monomodelo Porsche Supercup usa combustíveis sintéticos

Depois de obtido o e-metanól, é preciso ser refinado para chegar à gasolina sintética. Esse processo não é feito nesta fábrica, o crude sintético é enviado para a Exxon Mobil, que faz o resto do processo. Pode refinar a vários níveis de octanas, incluindo combustível para aviões. É um processo que gasta mais energia do que simplesmente armazenar eletricidade numa bateria. E ainda falta o transporte.

Não há efeito de escala

A capacidade de produção de 130 000 litros/ano desta fábrica chega para abastecer os 5000 litros gastos em cada corrida da Supercup. A HIF está a planear abrir outras fábricas, em locais não tão favoráveis em termos de vento, mas muito mais próximos do consumidor final. Caso contrário, a pegada de CO2 do transporte é catastrófica.

Outras empresas, como a BP e a Exxon Mobil e a Total Energies estão também em fase de produção-piloto dos combustíveis sintéticos, algumas explorando outras fontes de Hidrogénio verde. Mas a produção total estimada para 2026 é insignificante, para as necessidades globais.

Preço muito alto

E depois há a questão do preço por litro. A Porsche não dá informações precisas acerca do custo atual do combustível que sai da fábrica do Chile, mas faz uma previsão de que possa custar 2€, mais taxas, em 2030, se forem construídas fábricas em número suficiente para que o efeito de escala se faça sentir. E estamos a falar de um valor sem impostos.

Combustíveis sintéticos são perfeitos para os clássicos

Num país como o nosso em que, num litro de gasolina, 40% são impostos, o preço por litro da gasolina sintética nunca ficaria abaixo dos 3,4 euros. Mas tudo isto são projeções baseadas em variáveis cuja evolução é impossível de prever a uma distância de sete anos.

E nem sequer é “limpo”

Talvez o pior aspeto dos combustíveis sintéticos seja que não são capazes de eliminar a poluição que sai dos escapes dos automóveis.

Ao serem compostos pelos mesmo elementos químicos, Hidrogénio, Oxigénio e Carbono, as reações químicas na combustão são as mesmas e continuam a emitir sensivelmente a mesma quantidade de NOx, CO, amoníaco e partículas de fuligem. No caso das partículas, até se verifica que sejam emitidas 5 a 10 vezes mais, no caso dos sintéticos.

Conclusão

É por tudo isto que a indústria automóvel vira as costas aos combustíveis sintéticos: são caros, não resolvem o problema da poluição e só resolvem o problema do CO2 se a sua produção for devidamente fiscalizada. Pois já há quem esteja a considerar a energia nuclear como uma fonte “limpa” de eletricidade para extrair o Hidrogénio da água. Por agora, os combustíveis sintéticos não passam de uma ilusão.

Francisco Mota

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