O 2CV, um dos mais famosos carros franceses, foi cobiçado pelos nazis. Mas com a ajuda da Resistência, a Citroën escondeu os protótipos e a maquinaria, conheça esta história única.

 

Muito antes de se tornar um ícone de várias gerações, sinónimo de mobilidade acessível e de liberdade de movimentos, o 2CV passou por muitas aventuras até começar a ser produzido pela Citroën.

Talvez a mais importante seja a da sua fuga à caça que os nazis lhe montaram, durante a invasão de França na segunda guerra mundial.

TPV nasce nos anos 30

Tudo começa nos anos trinta, quando a Michelin fica com a propriedade da Citroën, numa altura em que a marca do “double chevron” passava por grandes dificuldades financeiras e o fabricante de pneus era já o seu principal credor.

Isto acontece em 1934 e logo a seguir é lançado um inquérito à população, na altura maioritariamente rural, no sentido de perceber quais as suas necessidades de mobilidade.

O resultado desse inquérito é sintetizado de forma quase humorística no caderno de encargos de um novo carro que recebe o código interno TPV (Toute Petite Voiture) e que dizia o seguinte:

“Tem que ser um automóvel pequeno e barato, capaz de levar quatro pessoas e 50 kg de mercadorias para ir vender ao mercado, a uma velocidade de 50 km/h, por estradas de terra e não pode gastar mais de 3,0 l/100km.”

O texto acrescentava ainda que a suspensão tinha de ser suficientemente confortável, para o carro poder levar uma cesta de ovos através de um campo lavrado, sem os partir.

Muitos o apelidaram de guarda-chuva com rodas, numa alusão à sua simplicidade e ao seu objetivo de motorizar uma população que, até essa altura, não tinha capacidade financeira de adquirir nenhum automóvel.

O TPV começa a ser projetado em segredo em 1936, em simultâneo nas instalações de Citroën e da Michelin. A grande prioridade era manter os custos e o peso o mais baixo possível, pelo que foi criado um departamento para investigar a redução de peso de todas as peças.

Do Grande Prémio para o TPV

O chefe do projeto foi o engenheiro André Lefèbvre, que tinha participado anteriormente no projeto de carros de Grande Prémio e que por isso tinha a cultura da construção de baixo peso.

No final de 1937, os primeiros 20 TPV experimentais estavam prontos e começaram a ser testados. A carroçaria era feita de chapa ondulada, para poder ser mais fina, sem perder rigidez e só tinha um farol à frente, pois era o mínimo exigido pelo código da estrada francês.

Em 1939, o TPV estava pronto a entrar em produção, após uma segunda série de 47 protótipos ter sido construída e testada, integrando as modificações consideradas necessárias após os testes da primeira série de vinte veículos experimentais.

Alumínio e dois cilindros no 2CV

A carroçaria e plataforma eram fabricadas utilizando o Alumínio e o Magnésio, o motor era um dois cilindros opostos, horizontal, refrigerado a água e a tração às rodas da frente.

As suspensões utilizavam oito barras de torção e um curso muito grande. A Michelin aproveitava para estrear os seus novíssimos pneus radiais.

O interior era do mais básico que se podia imaginar, com bancos que mais pareciam espreguiçadeiras, penduradas do tejadilho. Este oferecia o único aspeto lúdico: um teto de enrolar, em lona, que chegava até à traseira.

Em Agosto de 1939 é completada uma série piloto de 250 unidades, são impressos os catálogos e brochuras publicitárias, enfim, está tudo pronto para a apresentação mundial do 2CV no salão do automóvel de Paris.

Estala a guerra!…

No dia 3 de Setembro, a França declara guerra à Alemanha, o salão de Paris é cancelado e a apresentação do 2CV anulada.
Com receio de que os nazis se apropriem do projeto do 2CV, os homens da Michelin e da Citroën decidem destruir todos os exemplares construídos.

À exceção de alguns que são enterrados em locais secretos e dispersos da França. A intenção dos nazis seria a de fabricar versões de guerra do 2CV, como fizeram com a base do VW KDF.

Para evitar que isso fosse possível, toda a maquinaria de fabricação do 2CV foi desmantelada, separada e enviada por comboio para vários destinos da Europa, com a Resistência a ajudar na falsificação da identificação do conteúdo de cada vagão, nas respetivas guias de marcha, para os nazis não os intercetarem.

Desenvolvido mesmo durante a guerra

Pierre Boulanger, o presidente da Citroën, recusa-se sempre a colaborar com o regime nazi, é declarado inimigo do Reich, ameaçado de prisão e de deportação para a Alemanha, mas continua a desenvolver o 2CV em segredo, durante a guerra.

Em 1941, um relatório interno da Citroën avisa que a produção do TPV após a guerra não seria viável, pelo menos se fosse feito em Alumínio, como inicialmente previsto, pois o preço dessa matéria prima tinha subido 40%.

Boulanger decide então redesenhar o TPV, mas usando aço em vez de Alumínio, deixando portanto de ser preciso usar chapa ondulada, dada a maior rigidez do aço.

Da água para o ar

Em 1944, Boulanger decide abandonar o motor refrigerado a água, que tinha sido desenvolvido para o carro e opta pela refrigeração a ar, mais simples.

Mantinham-se os dois cilindros horizontais oposto, os 375cc e uma caixa de velocidades de três relações, mas Walter Becchia, o engenheiro responsável por esta área, consegue fazer uma caixa de quatro relações com o mesmo tamanho e pouco mais cara.

Isto era uma novidade, numa altura em que a maioria dos carros não tinha mais de três mudanças. Os bancos também passaram a ter uma estrutura tubular e molas e o aspeto exterior do carro foi redesenhado pelo estilísta da casa, Flaminio Bertoni.

Atrasos depois da guerra

Afastado o perigo nazi, a verdade é que a produção do 2CV encontrou outro obstáculo político inesperado, dentro da França do pós-guerra.

O plano Pons, implementado na economia francesa para a racionalizar no período de reconstrução do país, impunha uma distribuição de tarefas pelas várias fábricas: para a Citroën tinha ficado atribuída a produção de carros médios e grandes, como o Traction Avant.

Os carros pequenos seriam exclusivos da Renault e do seu 4CV. Mas tudo isso teria um fim em 1949.

Salão de Paris de 1948

O 2CV seria finalmente apresentado ao público no salão de Paris de 1948, numa configuração muito próxima à que seria colocada à venda no ano seguinte.

Já tinha dois faróis dianteiros, mas apenas um farolim traseiro, só o capót era em chapa ondulada e só na véspera do salão foi decidido equipar o carro com “starter” elétrico.

A única cor disponível era o cinzento, o nível de combustível no depósito era medido com uma vareta e o velocímetro estava fixo ao pilar do para brisas. Tudo para manter o preço o mais baixo possível.

O motor inicial tinha 375cc e 9 cv, fazendo o 2CV atingir os 65 km/h e tornou-se no alvo da chacota de alguns comediantes. Mas os compradores não se deixaram influenciar pelo humor sarcástico e aderiram em massa ao 2CV, logo desde o início.

Revolução na mobilidade

O 2CV foi um carro que mudou a vida de muita gente, sobretudo das classes menos favorecidas e mais rurais de França. Poucos meses depois da apresentação, as listas de espera já eram de uns incríveis três anos e depressa passaram para cinco anos, tornando as unidades usadas mais caras que as novas. Mas com o aumento da produção, isso acabaria por ser resolvido.

Também a opinião dos críticos foi mudando com a evolução do modelo, passando a ser considerado como um exemplo de construção barata e eficiente.

O 2CV daria origem a outros modelos que partilhavam os seus componentes base, como o Ami, o Dyane e várias versões comerciais. A produção em França durou uns incríveis quarenta anos, de 1948 a 1988 e na fábrica de Portugal, em Mangualde, foi construído até 1990.

Somando todos os modelos e versões feitas com base nesta plataforma, a Citroën vendeu mais de nove milhões de unidades.

E os protótipos escondidos?…

Quanto aos protótipos TPV, que tinham sido enterradas antes da guerra, até 1994 apenas dois tinham sido encontrados, mas em 2004 foram descobertos mais três destes TPV em alumínio.

A Citroën decidiu não os restaurar, mantendo-os no estado em que foram encontrados, preservando assim um episódio da história do modelo.

O 2CV tornou-se também num culto, para quem apreciava a condução simples e descomprometida, o baixo custo e até o estilo único. Foram nascendo inúmeros clubes de fãs do 2CV, um modelo que nunca teria um sucessor direto.

Conclusão

Pela sua originalidade, construção eficiente e relativa simplicidade, o C4 Cactus terá sido o modelo que mais se aproximou do conceito do 2CV. Até pela polivalência de utilização, mesmo fora de estrada, pelo menos é a opinião de alguns coleccionadores do 2CV original.

A suspensão de curso extra-longo do 2CV, que lhe permitia ser confortável e conseguir passar sobre estradas de todo o tipo, tem hoje na configuração crossover do C4 Cactus o seu paralelo moderno, que lhe acrescenta a tecnologia dos amortecedores de batentes hidráulicos progressivos para atingir níveis de conforto únicos entre os seus concorrentes. De algum modo, a herança do 2CV permanece viva.

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