Por cá ficou conhecido como o boca de sapo, mas na sua pátria era uma Deusa. Saiba qual o recorde do Citroën DS que só foi batido pelo Tesla Model 3.

 

Há momentos na história do automóvel que ficam para sempre. Geralmente são as grandes conquistas no desporto que mais chamam a atenção, mas há outras ocasiões tão ou mais importantes, que importa lembrar.

Se o teletransporte para o passado não se tivesse ficado pelo De Lorean de “Back to the Future” uma das viagens que eu iria querer fazer era precisamente para o dia 5 de Outubro de 1955, local?… Salão automóvel de Paris.

Nesse dia, a Citroën mostrou ao mundo o sucessor do seu histórico Traction Avant, que terminava assim uma ilustre carreira de 23 anos. O novo modelo tinha estado em desenvolvimento durante 18 anos, parte dos quais na clandestinidade, devido à guerra.

Uma Deusa caída do céu

Mas o tempo fora bem empregue, como se viu nesse dia de Outubro de 1955.
“Uma forma caída do céu” foi como um filosofo mais tarde descreveu as formas do DS, num ensaio dedicado ao carro francês.

Olhando para as imagens desse salão automóvel, não é preciso ter muita imaginação para calcular as exclamações do público quando o pano subiu e o DS ficou finalmente à vista de todos.

Nunca ninguém tinha visto nada semelhante, muito menos com quatro rodas e um motor. Uma forma com clara influência no imaginário da exploração do espaço, um tema quente da altura. Uma verdadeira escultura, que demorava tempo a entender, mas que cativava ao primeiro olhar.

As reações dos visitantes

Imagino facilmente as reações, porque ainda hoje o DS faz rodar as cabeças dos transeuntes que tenham a sorte de ver passar um à sua frente. Passados tantos anos, um DS impressiona quase tanto como no primeiro dia.

A reação do público nesse salão de Paris de 1955 foi absolutamente extraordinária e certamente inesperada para a própria Citroën. As pessoas ficavam horas a olhar para o DS, estupefactas com cada detalhe: a frente baixa e sem grelha, as rodas traseiras tapadas, os piscas traseiros no topo do tejadilho e a rodas da frente com a via muito mais larga que a de trás.

E isto era apenas o que se podia ver de fora, porque lá dentro, tanto no habitáculo como na mecânica havia muito mais para admirar.
Um volante com apenas um raio chamava as atenções mas não passava de um mero detalhe num carro que estreava a inovadora suspensão hidropneumática.

Juntar agua e azeite

Esta era uma tecnologia que conseguia juntar água e azeite: ser confortável como nenhuma outra e proporcionar um comportamento dinâmico de exceção. Além disso era autonivelante e a altura ao solo podia ser regulável pelo condutor, para transitar sem estragar o fundo do carro nas degradadas estradas de província, na França do pós-guerra.

Mas a tecnologia inovadora não se ficava por aqui. A bomba de pressão central, necessária para a suspensão, era depois aproveitada para a direção assistida, para a travagem (que usava os discos de travão ainda só vistos nos Jaguar de Le Mans) e para a caixa semi-automática, sem pedal de embraiagem.

A aerodinâmica era uma preocupação óbvia ao olhar para a forma em gota de água da carroçaria, mas também o centro de gravidade baixo era uma prioridade, para a qual contribuía o tejadilho em matéria plástica, algo nunca visto num automóvel topo de gama como o DS, ou o capót em alumínio.

Todos os painéis da carroçaria eram facilmente removíveis e as portas não tinham molduras nos vidros.

Recorde que durou 60 anos

Foi um dia incrível também para a história das vendas de automóveis. Veja só estes números: nos primeiros 15 minutos após a revelação do DS, o público do salão precipitou-se para os vendedores da marca e fez 743 encomendas. A “loucura” não ficou por aí.

No primeiro dia de exibição, o DS atraiu um total de 12 000 encomendas, algo nunca visto.
No final dos dez dias do salão de Paris de 1955, o total de vendas sinalizadas foi de 80 000.

Este foi um recorde que durou mais de sessenta anos e que só foi superado em Março de 2016, quando a Tesla apresentou o seu Model 3 e garantiu nada menos do que 180 000 encomendas sinalizadas num só dia. Mas agora numa altura em que a velocidade da comunicação nada tinha a ver com a dos anos cinquenta.

Dois protagonistas

A história tem sempre a tendência de simplificar as coisas e personificar em poucas pessoas um trabalho que nunca poderia ter sido feito se uma equipa determinada e dedicada não tivesse contribuído toda para o projeto.

É o caso do DS, mas será difícil tirar o mérito ao estilista do DS, Flaminio Bertoni, que esculpiu a forma única da carroçaria. Mas se Bertoni foi o escultor, então André Lefèbvre foi o arquiteto, o homem que definiu as soluções mecânicas do DS. Ele foi muito ajudado por Paul Magès, o engenheiro que chegou à Citroën em 1942 e que dominava a suspensão hidropneumática, a solução que deu um novo rumo ao projeto do DS.

Mudança de rumo

Na verdade, o VGD (Veículo Grande Difusão) era um projeto inicialmente destinado a substituir o Traction Avant, com a prioridade de ser mais barato de produzir e mais confortável.

Mas com a morte do diretor geral da marca, Pierre Boulanger em 1950, o seu sucessor, Pierre Bercot, decide dar um novo rumo ao VGD e torná-lo num modelo topo de gama.

A primeira tentação foi colocar um motor de seis cilindros, que a marca tinha em desenvolvimento, mas para grande frustração de Bercot, dificuldades técnicas obrigaram a usar uma versão melhorada do quatro cilindros do Traction Avant.

Contudo, a arquitetura do VGD foi mantida. Em vez da estrutura monobloco do Traction Avant, o DS usava uma plataforma que suportava toda a mecânica e tinha por cima um esqueleto onde eram montados muito facilmente todos os painéis da carroçaria, facilitando assim a fabricação, a manutenção e a reparação.

Na verdade, era um conceito muito próximo ao do TPV, o famoso 2CV no qual Lefébvre também tinha trabalhado.

A evolução do DS

O DS nunca deixou de ser evoluído, desde logo no motor que subiu dos 1911 cc e 75 cv da versão original DS19 de 1955; até aos 2347cc e 141 cv do DS23, tendo sido o segundo modelo no mundo a receber uma injeção eletrónica, em 1969.

Dois anos antes disso, em 1967, o restyling da zona dianteira trouxe consigo os grupos óticos dianteiros carenados, que permitiam uma subida de 10 km/h na velocidade máxima e incorporavam os primeiros faróis direcionais da indústria automóvel.

Além da versão berlina de quatro portas, o DS conheceu também uma versão carrinha e até um descapotável. Em paralelo existiu desde 1956 uma gama designada ID, um pouco menos sofisticada e mais acessível.

Carro de Estado

O DS ficou também célebre por ser o carro dos estadistas franceses durante anos, com destaque para o presidente De Gaulle que por ele nutria uma admiração particular.

Esta ligação terá levado a Citroën a conceber uma versão para os clientes que se faziam conduzir por motoristas, o DS Prestige, que tinha um banco corrido à frente, vidro elevatório para separar os lugares da frente dos de trás e um intercomunicador para o “patrão” poder dar ordens ao seu motorista.

Conclusão

A produção dos DS/ID terminou no dia 24 de Abril de 1975, totalizando 1,45 milhões de unidades, um número impressionante, para um carro de topo de gama.
A “Déesse”, ou a Deusa, como os franceses carinhosamente lhe chamavam, marcou uma era na indústria automóvel, impulsionando o desenvolvimento tecnológico e obrigando muitos dos concorrentes da Citroën a ter que investir para acompanhar esta nova idade do automóvel.

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