Este ano comemoram-se os 100 anos da Citroën e a CEO Linda Jackson disse: “todos temos uma história com a Citroën”. Aceitei o desafio e fui à procura das minhas…

O ano de 1919 ficou nos livros de história do automóvel como o da fundação da Citroën, uma marca “fora da caixa” desde o primeiro momento, algo que se viria a confirmar ao longo de quase toda a sua existência, nas mais variadas áreas.
Mas há a história e as histórias, neste caso as que, afirmou a “Directrice Générale” Linda Jackson, “todos temos com a Citroën.” Encarei esta declaração como um desafio e decidi ir ao meu baú de memórias à procura das minhas histórias com a Citroën

O Citroën do tio Manuel

Se o meu pai tivesse tido um Citroën, escrever este texto teria sido muito mais fácil, mas não, nunca calhou. Puxei um pouco mais pela memória e fez-se luz! Mas a preto-e-branco: lembro-me de muitas coisas desse episódio, mas não me lembro da cor do carro… do meu tio Manuel.
Ele teve um Citroën – pelo menos um de que me lembro bem – pelo impacte que causou quando decidiu fazer-nos uma visita para mostrar o carro novo, como se fazia no início dos anos setenta. Era como apresentar uma namorada à família, exibindo as suas qualidades e preparando-se para as críticas, mais ou menos cruéis, dos familiares que a iriam conhecer.

E o meu tio teve que se preparar muito bem para a conversa, pois comprar um Citroën naquela altura era ter uma atitude diferente dos outros. Sobretudo tratando-se do carro que era: um Citroën Ami 6.

Um carro com um conceito único, diferente de tudo o que circulava na estrada, ou fora dela. O meu tio apresentava o carro enaltecendo o baixo peso, que permitia consumos mínimos. E o incrível conforto nas estradas nacionais da altura, nem todas com a manutenção em dia. Contava histórias de como já o tinha conduzido em caminhos de terra sem que a suspensão se queixasse, era um “calça arregaçada” como chamavam ao 2CV, devido à sua suspensão alta, capaz de passar “por cima de toda a folha”, para continuar com as expressões que se usavam nesse tempo.

O amplo espaço interior também era argumento do meu tio, que carregava com os dedos nos bancos para mostrar como eram macios e confortáveis. Lembro-me de entrar para o banco de trás e achar que nunca tinha estado sentado num banco, de carro ou de casa, tão mole. E depois, lá estava aquela estranha bengala no meio do tablier, a alavanca da caixa partilhada com o 2CV, aliás como toda a mecânica e plataforma.

Ora bolas!…

A conversa continuou pelo estilo da carroçaria até que chegámos ao vidro de trás, inclinado para a frente: “ora bolas!…” alguém exclamou em ar jocoso. A expressão tinha sido inventada para outro carro que também tinha um vidro assim, o Ford Anglia Fascinante, mas assentava perfeitamente ao Ami 6. O meu tio bem se esforçou por dizer que “até ficava bem” mas acabaria por admitir que era a parte do carro de que menos gostava.

A Citroën seria sensível a reações destas, que devem ter acontecido por todo o lado e, no restyling do Ami, o vidro traseiro passou a ter a inclinação para o sítio certo.

Um furo num DS

Continuando à procura nos meus arquivos em memória, encontro outra história com a Citroën. Já era eu bem mais crescido e tinha ido fazer um daqueles passeios de Domingo pela zona saloia de Lisboa, uma verdadeira “seca” para um pré-adolescente, mas que naquele caso tinha dois pontos a favor: o passeio era com a família de uma amiga que eu gostava que fosse mais do que isso. E a bordo de um imponente DS 21 branco.

Claro que a minha atenção se repartia entre os meus dois interesses, pelo que a memória não registou todos os detalhes do DS. Mas a meio do caminho, tivemos um furo na roda traseira direita e começou o espetáculo!

Em primeiro lugar, era preciso desapertar um parafuso cromado, bem no extremo do guarda-lamas traseiro, que permitia retirá-lo completamente para fora, de modo a dar acesso à roda, que era quase toda tapada por ele. Depois tinha que se montar o macaco, mas em vez de dar à manivela para fazer subir o carro, bastava fazer subir a suspensão, montar o macaco e depois descer a suspensão, com a roda a ficar no ar.

Ainda hoje penso o que teria sido se, em vez de montar a roda suplente, o pai da minha amiga tivesse resolvido continuar a viagem em três rodas, como a publicidade da Citroën da altura prometia. Segui estas manobras com a máxima atenção, com a minha curiosidade certamente a atrapalhar. Talvez por isso, a minha amiga nunca passaria disso mesmo…

Ao volante de um DS23 Pallas

A terceira “aventura” que tive com a Citroën foi um pouco “ilegal”. Meses antes de poder tirar a minha carta de condução, um amigo do meu pai emprestou-lhe um DS23 Pallas para “ir à terra” no fim de semana.

Era um carrão! Pintado de preto, com tapetes de quatro dedos de altura e um vidro elétrico a separar o banco corrido da frente do de trás. Para os passageiros comunicarem com o “motorista”, tinham um microfone e um altifalante, bastava carregar num botão. A viagem foi uma enorme diversão, pelo menos para os mais novos, que iam lá atrás. Mas não é essa a parte “ilegal”.

Depois de uma longa jornada pelas estradas degradadas do Alentejo, que o conforto e a potência do DS23 tinha transformado numa espécie de viagem de avião em primeira classe, claro que fiquei cheio de vontade de o guiar.
No dia seguinte, eis que consigo convencer o meu pai a deixar-me guiar o carro numa estrada deserta. Ainda hoje me custa a acreditar como a minha argumentação surtiu efeito…

Sentei-me ao volante, o meu pai explicou-me como usar a alavanca da caixa colocada na coluna de direção “é igual às outras, vais ver” e lá fomos os dois. Devagar, claro, mas com a potência do motor a pedir para ser usada. Acelerei um pouco mais, umas duas vezes, e depois tinha que travar naquele pedal em forma de cogumelo, super-sensível para a minha parca experiência de condutor, adquirida noutras sessões deste género.

A imagem que tinha do DS era a de um carro grande e confortável, mas naquele dia descobri que também podia ser um carro bem rápido.

Claro que também tenho uma história com o 2CV. A mãe de uma amiga, que tinha uma adoração por tudo o que vinha de França, decidiu comprar um dos últimos 2CV produzidos em Mangualde até 1990, azul e novo em folha. Uma excentricidade, sem dúvida, mas que proporcionou belos passeios ao luar com a minha amiga, com o teto de lona devidamente enrolado para trás…

Break XM encontra ID

As minhas histórias com a Citroën aceleraram quando comecei a minha carreira de jornalista de automóveis, no final dos anos oitenta, no jornal “O Volante”. A experiência de guiar um XM foi desconcertante, para quem estava habituado a testar (poucas) berlinas grandes e convencionais. Mais uma vez, era o conforto a destacar-se e aquele hábito de sentir a suspensão traseira a subir e a descer, quando parava nos semáforos.

Quando saiu a versão carrinha decidi que era boa ideia fazer um comparativo histórico com uma carrinha ID19 e no final de um dia passado no Porto com o dono da carrinha clássica, ficou bem claro o vínculo entre dois modelos separados por várias décadas.

AX e Saxo: duas escolas

Depois veio aquele que é, até hoje, um dos pequenos desportivos mais impressionantes de sempre, o AX GTI. Fiz um comparativo com vários rivais, no autódromo do Estoril e a superioridade dinâmica do AX chegava a ser chocante. A leveza, a facilidade e precisão com que a frente mudava de direção e se colava à trajetória ideal: quase parecia um carro de competição!

As memórias sucedem-se a um ritmo cada vez mais rápido, como aquela vez em que, já estando a escrever para a revista Automotor, fui ao autódromo testar um Xantia Activa. Eu e os meus colegas ficámos de boca aberta com a forma como a suspensão fazia o carro curvar sem inclinação lateral e com incrível velocidade. O corpo era literalmente atirado para os apoios laterais do banco, mas sem em algum momento se sentir o carro inclinado, como depois as fotos provaram.

Ainda na pista do Estoril, fiz o meu batismo de competição no troféu Saxo Cup. Um sonho de criança que se concretizou. De repente estava ali na mesma pista que os mais sonantes pilotos nacionais da altura, enfim, estava na mesma pista… mas mal os via, tal era a minha inexperiência.

Uns meses depois, a Citroën voltou a dar-me a possibilidade de outra estreia, e essa nem em sonhos de criança alguma vez tinha surgido. Participar numa corrida do troféu Saxo Cup de inverno, ou seja, numa corrida englobada no famoso troféu Andros.

De repente lá estava eu na “roulotte” da equipa a ser “brifado” sobre a condução no gelo, com pneus de pregos, duas coisas que nunca tinha feito antes da qualificação. E com a recomendação de travar com o pé esquerdo, uma técnica que conhecia bem… de ver nos vídeos de ralis. Para espanto meu, consegui perceber como aquilo se fazia, resisti aos toques e empurrões dos pilotos franceses e acabei no meio da tabela. Até o “speaker” do circuito ficou espantado.

Voluntários? Eu!…

Claro que o Saxo Cup foi um carro que marcou uma geração, tanto nas pistas como na estrada. Sempre que aparecia uma atualização do modelo, lá estava eu na fila da frente na redação, a declarar-me voluntário para fazer o teste. Aprendi imenso sobre condução desportiva de carros de tração à frente com o Saxo Cup, disso não tenho dúvida.

Claro que a Citroën, como todas as marcas, também teve os seus períodos e carros menos brilhantes, como aquele ZX 14D, muito poupado mas muito lento. Também nunca me esqueci dessa história e da sessão de medições que parecia nunca mais acabar.
A atitude “fora da caixa” vivi-a também ao testar em França um protótipo do Xsara Dynalto, aquilo a que hoje se chama um “mild-hybrid”. Tudo funcionava perfeitamente e saí de lá a pensar que, dentro de dois anos todos os carros seriam assim. Mas ainda não são.

No lugar de Loeb

Quando chegou o C4 e foi usado como base do carro do WRC, a Citroën, como era hábito na altura, convidou alguns jornalistas para testar o carro numa pista de ensaios de terra. E essa experiência não a vou esquecer.

Lá estava o incrível C4 WRC sob uma tenda e o seu piloto, nada menos do que Sébastien Loeb, à disposição. Perguntam-me o que prefiro, se andar ao lado de Loeb ou guiar eu próprio. Julgo que demorei meio segundo a decidir: guiar o carro, claro!

Loeb teve a gentileza de me dar algumas dicas, muito sumárias, que nessa altura ele era pessoa de poucas palavras. Fechou-me a porta e os mecânicos largaram-me à minha sorte. A sensação de potência, de tração, de controlo, de rapidez de reações deixou-me sem palavras! Na verdade, foi ao contrário, quando comecei a escrever esse teste-competição, não conseguia parar de acrescentar sensações, impressões. Um dia mesmo especial.

O último de uma era

A Citroën foi evoluindo com o correr dos anos, mas mantendo sempre uma atitude própria. O C6 foi a última das grandes berlinas a seguir a receita clássica. Na altura decidi fazer um teste mais longo do que o habitual e percorri o país de Norte a Sul, sempre à procura das piores estradas para desafiar a suspensão, que se mostrou superior às provocações.

A maneira como o C6 pisava a estrada era única, num perfeito equilíbrio entre conforto e controlo. E de cada vez que estacionava o carro, olhava para ele e descobria um ângulo de que não me tinha apercebido. Não era carro para encantar à primeira vista, exigia atenção do olhar para lhe descobrir as nuances. Ficou-me na memória uma vista do capot, de frente, com os olhos à altura dos faróis e o sol do final da tarde a dar vida à superfície suavemente encurvada.

Teste virtual

Depois vieram os Picasso, a mostrar como se fazia um monovolume espaçoso, versátil e mantendo um estilo inconfundível. Testei o C3 Picasso antes mesmo de ele existir, numa caverna de realidade virtual nos laboratórios secretos da PSA, algures perto de Paris. Era como estar dentro do carro, vendo todos os recantos através de projeções nas paredes e com óculos de três dimensões. Só faltava poder tocar nos materiais do tablier para lhes avaliar a qualidade.

E tudo volta ao Ami

Chegámos à geração atual, iniciada pelo novo C3 e seguida pelos restantes modelos, numa autêntica revolução estilística. A memória mais forte é a de testar o C3 Aircross numa estrada de montanha completamente nevada, entre paredes de neve da altura do carro, numa noite em que a tempestade tinha tirado o que restava de visibilidade. Só com tração à frente, mas com o Grip Control a dar uma ajuda que julgava impossível.

A última história que tenho, não é uma memória, é bem recente e voltou a acontecer no tal laboratório secreto, onde, como jurado do Car Of The Year vi, em primeira mão mundial, o novo Ami One Concept. Mais um veículo fora da caixa, o “objeto”, como a marca lhe chama e que promete revolucionar a mobilidade. Muito diferente do Ami do meu tio Manuel.

Conclusão

Testei todos os Citroën lançados no mercado nos últimos trinta anos, o que já é um terço da história da marca. Ainda me falta recuar no tempo e experimentar alguns dos clássicos lançados antes do “meu tempo”, como o SM, o Traction, o Méhari (uma falha imperdoável) ou um dos primeiros carros dos anos vinte. Ainda tenho espaço no disco rígido para gravar mais algumas histórias.