Fala-se em Citroën e fala-se em conforto, quando se olha para alguns dos seus maiores clássicos. No centro de tudo, estava a suspensão hidropneumática. Mas sabe como funcionava e como inspirou os novos batentes hidráulicos progressivos?

Proponho uma sondagem: que ideias lhe surgem associadas ao Citroën DS de 1955?… Sem arriscar muito, digo que o estilo inovador e o conforto invulgar devem estar no topo das respostas. Qualquer pessoa que alguma vez tenha andado num DS, ao volante ou como passageiro, certamente terá ficado com aquela sensação de conforto única, gravada na memória.

Conforto e não só

Muitas vezes descrita como se os ocupantes estivessem a viajar num tapete voador, o DS mostrou como era possível atingir níveis de conforto invulgares e, ao mesmo tempo, melhorar o comportamento dinâmico. Ao contrário dos rivais que foi tendo ao longo da sua carreira, o DS não chegava ao conforto pela via de molas macias e pouco amortecimento. Tanto o conforto como a eficácia dinâmica se mostravam superiores a muitos concorrentes, o que valeu à enorme berlina uma inesperada, e bem sucedida, carreira desportiva nos ralis internacionais.

Suspensão hidropneumática

No centro de tudo, estava a suspensão hidropneumática, uma solução técnica muito avançada para a época e de uma complexidade que demonstrava a ousadia do construtor. Colocar em produção em série uma suspensão deste tipo, era um ato de coragem; equipar os seus concessionários com as ferramentas e a formação necessárias para fazer a manutenção da suspensão hidropneumática, terá sido um pesadelo logístico.

Mas afinal como funcionava?

No lugar de molas e amortecedores, cada roda tinha uma esfera de aço, com um cilindro por baixo, dentro do qual se movia um êmbolo, accionado por um braço da suspensão de cada roda. O segredo estava dentro da esfera.

Na parte superior, estava Azoto a 75 bar de pressão, a meio estava uma membrana de borracha. No hemisfério inferior, estava um fluído especial: um óleo, por isso a suspensão também era conhecida inicialmente como óleo-pneumática.

Azoto, em vez de aço

O princípio da compressibilidade fazia do gás a componente elástica da suspensão, o equivalente à mola de uma suspensão convencional. O Azoto é seis vezes mais flexível que uma mola de aço, por isso não gerava tantas vibrações de alta frequência, ou seja, não precisava de tanto amortecimento. A passagem do óleo por orifícios calibrados, colocados entre a esfera e o cilindro, chegava para fazer o efeito de amortecedor.

O óleo de cada conjunto esfera/cilindro estava ligado a um circuito que incluía um depósito de óleo, uma bomba de alta pressão accionada pelo motor e um reservatório de óleo sob pressão. Além das válvulas de pressão e distensão, que faziam variar a pressão do circuito entre os 140 e os 175 bar. Estas eram as responsáveis por garantir o efeito auto-nivelante, mantendo a altura ao solo constante, independentemente da carga transportada.

Roda para cima…

Quando uma roda subia, empurrada por uma bossa na estrada, fazia subir um braço da suspensão, articulado à plataforma e conectado ao êmbolo de cada roda, empurrando-o para cima, dentro do cilindro ligado à esfera.

Este movimento, pressionava o óleo para dentro da esfera e comprimia o gás, que assim fazia efeito de mola. Ao mesmo tempo, parte do óleo era dirigido para fora do conjunto cilindro/esfera, para o acumulador de óleo sob pressão, para deixar a roda subir o necessário.

…roda para baixo

Quando uma roda descia, para dentro de uma depressão da estrada, o mesmo êmbolo descia, deixando o óleo sair da esfera para o cilindro, aliviando a pressão sobre o gás e admitindo mais óleo na esfera/cilindro, obrigando a roda a descer.

A gestão da circulação do óleo entre as quatro esferas e o depósito central, permitia manter constante a altura do carro ao solo, independentemente do movimento das quatro rodas. Mas isso só era feito com o carro parado, para não interferir com a dinâmica.

Altura regulável

O condutor podia ajustar a altura da suspensão através de uma alavanca, por exemplo colocando-a mais alta, para circular em estradas degradadas. Esta possibilidade também facilitava na troca de um pneu furado e a marca garantia que o DS podia circular só em três rodas, a baixa velocidade.

O circuito de alta pressão tinha outras utilizações, sendo empregue para a assistência do sistema de travagem, direção e embraiagem. Também seria usado para o sistema de faróis rotativos e para os vidros elétricos.

A Citroën patenteou a suspensão hidropneumática, inicialmente inventada por um dos seus técnicos, Paul Magès, para fazer face aos maus pisos da França do pós-guerra. A primeira aplicação foi na suspensão traseira do Traction Avant 15H, dando assim resposta às críticas dos seus proprietários, que consideravam o modelo como a “rainha da estrada” em termos de comportamento dinâmico, mas à custa de um conforto insuficiente.

A evolução da ideia

A Citroën foi evoluindo o sistema, desde logo mudando o fluído inicialmente empregue (era vermelho) que absorvia humidade, facilitando a corrosão. Foi substituído por um fluído verde, mineral e hidrófobo, muito mais resistente à humidade. Nos anos oitenta, seria substituído por um fluído laranja, com características ainda melhores.

O controlo da inclinação lateral era uma das insuficiências do sistema inicial, que obrigava à montagem de barras estabilizadoras. Mas com a chegada da eletrónica, isso foi resolvido, até se ter chegado à suspensão ativa do Xantia, que conseguia atingir 1g de aceleração lateral em curva.

Durante anos, a suspensão hidropneumática foi um cartão de visita da Citroën, que chegou a vender os direitos de produção à Rolls Royce.

Batentes hidráulicos progressivos

Hoje, a Citroën tenta recuperar a noção de conforto como uma das características mais relevantes dos seus modelos. Claro que fazer renascer a suspensão hidropneumática já não se enquadra na realidade atual, pelos custos e pela complexidade a que um sistema destes hoje obrigaria. A solução para trazer de volta o conforto à Citroën está nos inovadores amortecedores com batentes hidráulicos progressivos.

O programa Citroën Advanced Comfort começou ainda com protótipos do primeiro C4 Cactus, que tive a oportunidade de testar em França, logo no início do seu desenvolvimento. Bastou sair do parque de estacionamento e passar por cima de uma banda sonora para perceber que o conforto estava de volta.

O conceito inclui a estratificação das espuma dos bancos, com zonas mais macias, para garantir o conforto em pisos degradados, e outras mais firmes, para manter a boa sustentação do corpo em curva.

Mas o segredo está nos amortecedores com batentes hidráulicos progressivos. Em vez de, no final do curso dos amortecedores, estarem colocados batentes de borracha, que não absorvem muita energia e fazem ressalto, dentro de cada amortecedor estão dois batentes progressivos.

Um trabalha nas situações de compressão extrema e o outro nas de extensão extrema. Na verdade, funcionam como dois pequenos amortecedores, dentro do amortecedor principal.
Quando as solicitações da estrada são baixas ou moderadas, apenas o corpo principal do amortecedor funciona, portanto com os batentes progressivos a não intervir.

Mas quando as solicitações são mais fortes, por exemplo em lombas repentinas ou buracos, os batentes fazem o seu trabalho, absorvendo a energia nas duas situações e evitando os ressaltos.
Uma das vantagens do sistema é que, com a presença dos batentes progressivos, os amortecedores principais puderam ser calibrados para uma taragem mais branda e confortável, pois não precisam de evitar o ressalto nos extremos de funcionamento, como os amortecedores normais. Isto permite melhorar o conforto, mesmo quando a estrada não tem mais do que algumas ondulações.

Conclusão

Numa altura em que a diferenciação técnica entre as marcas é cada vez mais pequena, é interessante ver como a Citroën soube ir buscar inspiração ao seu passado, identificando uma característica que todos identificam como fazendo parte do seu património. E depois transportar esse valor para o presente, dando-lhe uma interpretação atual.

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